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    Carlos Heitor Cony

    Regras e menopausa

    DE SÃO PAULO

    26/04/2013 03h06

    Deus é testemunha de que nada tenho contra os gramáticos, um dos meus maiores amigos é o mestre Evanildo Bechara, cuja cultura e bom senso superam as picuinhas armadas, não se sabe por quem, que ficaram condensadas na chamada "norma culta" que é ensinada nos colégios e desprezada pelo vulgo, vale dizer, por todos nós que falamos e escrevemos errado.

    Com o advento dos manuais de redação, adotados pelos principais veículos de comunicação do país e de grande parte do mundo, uma classe pitoresca de gramáticos assumiu o comando do idioma e passou a ditar regras que os profissionais da imprensa, inseguros dos segredos e ciladas da língua, acatam forçadamente, sem qualquer entusiasmo.

    Respeitam sem refletir regrinhas bobas, daí que, no domingo, lendo jornais e revistas para saber se o mundo ainda vale a pena, decidi anotar alguns desses modismos que não chegaram ao uso da plebe que simpaticamente continua falando errado.

    Somente para dar alguns exemplos: temos a consagração do "apesar de", que antigamente fazia a inevitável contração com o artigo (masculino ou feminino) que se seguia. Dizia-se, sem ferir a regra e o ouvido, "apesar disso ou daquilo" etc. Descobriram que não deve haver contração, daí que todos começaram a escrever: "apesar de o esforço". "Apesar de sua fortuna, continuava roubando apesar de a consciência reprová-lo."

    Bolas, a prevalecer o critério que suprime a contração, não mais haveria motivo para contrair preposição com artigo. Deveria dizer-se: "Em o restaurante tal", "em o próximo sábado", substituindo-se os tradicionais "no restaurante tal" e "no próximo sábado".

    Obedecendo essas regrinhas e outras da norma culta, que volta e meia entram ou saem de moda, 99% dos livros escritos no Brasil e Portugal estariam errados. Clássicos como Machado de Assis, Eça de Queiróz, Vieira e Camões teriam de aprender o idioma no qual foram mestres.

    Aliás, não é apenas em matéria gramatical que as regras em geral conflitam com o uso do povo que se entende ou desentende à sua maneira e conveniência.

    É o caso que já lembrei em crônica antiga do tradicional uso de "um chope e dois pastel". Todo mundo sabe ou deve saber o que é um pastel. Não existem "pastéis". Como não existem "dois lapises" quando nos referimos a mais de um lápis. Obedece-se à regra que o "esse" em determinados casos serve tanto para o plural como para o singular. Não se diz "fez" na suposição de que "fezes" é coisa plural em si mesma.

    São muitos os exemplos que poderia citar, mas basta lembrar um deles que está atualmente em grande moda: presidente ou presidenta? É uma diferença que transcende o bom uso da língua, passando a ser uma definição ideológica e política de quem usa uma ou outra forma vocabular. Quando alguém escreve ou diz "presidenta" para se referir à dona Dilma, trata-se de alguém do PT ou do governo em suas muitas esferas.

    Graciliano Ramos, que durante anos foi revisor num jornal carioca, recusava qualquer texto que tivesse a palavra "entrementes". Pessoalmente, sinto um frio na espinha quando me deparo com algumas palavras ou construções de estilo, como "por outro lado", que consegue juntar o alho com o bugalho. Exemplo: "O papa virá ao Brasil. Por outro lado, as chuvas não virão para o nordeste".

    Entrementes, e por outro lado, estou aqui ditando regras, lembrando de passagem o Adolpho Bloch que jogou na cesta um texto, nada mais nada menos que de Otto Lara Resende, o grande cronista da "Manchete".

    O famoso cronista, escrevendo sobre uma polêmica entre dois juristas, referiu-se a um deles como portador de "uma robusta argumentação". Otto foi reclamar com o dono da revista, que o despachou com um robusto argumento: "Seu Otto, aqui na 'Manchete', só o bebê Johnson é robusto".

    Por tudo isso, em matéria de regras, sou a favor da menopausa dos gramáticos. E em matéria de uso ou abuso de palavras, sempre me inquieto quando leio numa resenha esportiva que algum lance foi decidido na base da "morte súbita".

    carlos heitor cony

    Escreveu até dezembro de 2017
    carlos heitor cony

    É membro da ABL. Começou sua carreira no jornalismo em 1952 no 'Jornal do Brasil'. É autor de 17 romances e diversas adaptações de clássicos.

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