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    Carlos Heitor Cony

    Maitê Proença

    06/09/2013 03h05

    Li, não sei onde, que o Fred, craque do Fluminense e da seleção, fez uma participação em novela de horário nobre. Justifica-se: depois de sua atuação na Copa das Confederações, e daquele gol antológico que derrotou a Espanha, um gol inédito no mundo, o jogador inteiramente derrubado, sem posição nem ângulo para chutar, mesmo assim decidiu a partida.

    Se é unânime a sua qualidade no futebol, na telenovela ele precisaria ser melhor do que Laurence Olivier, Louis Jouvet, Anthony Hopkins e Rodolfo Valentino para impressionar o eleitorado. O mesmo se pode dizer do poeta polonês Karol Wojtyla, também autor teatral.

    Por mais que se tente a isenção, separando o artista do papa João Paulo 2º, qualquer juízo de valor a respeito de sua obra intelectual ficará prejudicado pela função principal que lhe deu notoriedade universal: a sua condição de papa num período histórico em que ele foi um dos principais personagens.

    Este introito é para falar de Maitê Proença, que acaba de lançar um novo livro, "É Duro Ser Cabra na Etiópia". Simples: ela pediu aos frequentadores do seu blog um texto pequeno e se possível bem humorado, reuniu uma vasta colaboração e com isso abriu um novo modelo de comunicação, participação, ou seja lá o que for dentro das possibilidades da internet.

    Acredito que a sua descoberta será ampliada e teremos muitas coisas interessantes no universo digital, que às vezes chega a ser muito chato. Mas não é deste livro que desejo falar. Em 2004, ela lançou "Entre Ossos e a Escrita", do qual tive a honra de fazer o prefácio, no qual dizia: "Temos a Maitê que deixa de ser o peixinho dourado e azul do aquário iluminado, no qual estamos a vê-la e admirá-la. Ela se oferece, agora, na densidade das águas submersas, onde nem sempre chega a luz do sol, mas tem o mar inteiro para se exprimir. Penetra com lucidez no sombrio átrio onde se realiza o solitário rito que fica, eleva e consola".

    Eu sabia que Maitê era fora de série como mulher e atriz. Mas, à medida em que ia lendo o que poderia ser uma autobiografia precoce, fiquei alucinado. Ela não perdeu tempo em recordar a sua atuação no teatro, cinema e televisão. Fez poucas, pouquíssimas marcações de sua imagem pública. Penetrou nela mesma, com sua sensibilidade, seus dramas pessoais e seu humor, dando-nos um deslumbrante quadro literário que tem momentos de Clarice Lispector, José Lins do Rego e Simone de Beauvoir. Dou alguns exemplos:

    "Não sei bem se aquilo que penso é o meu próprio pensamento e se o que desejo é o meu querer ou de outro."

    "Minhas microquestões me empacam e eu preciso seguir mas tenho de me livrar de mim para voltar a mim."

    "Gosto do Rio, amo às vezes, mas não sou daqui, e não sou de canto algum."

    "Quando faço tudo certo, ainda assim faço errado."

    "Será que os doidos são mesmo doidos?"

    "Quero o meu tempo de volta. Afinal, quem foi que inventou o futuro?"

    "Esta noite, tive um pesadelo. A verdade se encontrava do outro lado de um vasto oceano e eu não sabia nadar."

    "Certa vez, eu vivi uma paixão estética. O homem era um deus. Era burro mas era belo. Falava pouco e quando falava não dizia nada."

    "A avó Berta, com sua torrente de emoções, era um antídoto contra a monotonia. Berta gostava de sofrer em voz alta. Ela era incapaz de calar-se, mesmo estando só."

    "O pato então andava atrás dela, por toda parte, seguindo-a daquela forma geométrica que os patos têm ao caminhar em bando. Patos não gostam de curvas."

    "Nunca entendi por que são tão poucos os suicídios no mundo. Digam o que disserem os religiosos, não pode ser outra coisa se não o legítimo dispor do próprio corpo para interromper o intolerável."

    "Compreendi na última incursão que os idiomas ocidentais não servem para muita coisa quando se está na China. Tentar se expressar com gestos também não presta, chinês gesticula em chinês."

    "Prometo que na próxima encarnação virei preta e batista para voar alto sem ter que sair do chão."

    "Além do mais, os afegãos são os árabes mais bonitos do planeta. Magros e altos, de olhos subitamente verdes."

    "Descabelo-me em cinco idiomas, faço mímica, vou às lágrimas. Eles me olham como se observassem o cruzamento de um polvo com uma girafa."

    "Assim, a noite das ilhas Salomão corre em tsunamis de suspiros com suor e na manhã seguinte, a vida começa quando já é de tarde."

    carlos heitor cony

    Escreveu até dezembro de 2017
    carlos heitor cony

    É membro da ABL. Começou sua carreira no jornalismo em 1952 no 'Jornal do Brasil'. É autor de 17 romances e diversas adaptações de clássicos.

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