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    Carlos Heitor Cony

    Fim da matéria

    11/02/2014 03h30

    RIO DE JANEIRO - Um momento de indecisão ao subir a escada. Irá esbarrar com o quadro. É sua melhor obra em quase 20 anos de pesquisa e trabalho. A única que realmente valeu alguma coisa, que fugiu aos padrões convencionais, às repetições. E agora está abandonada e imersa no bar onde só se pensa em trepadas, negócios, piadas. Talvez tivessem substituído o quadro, muitos pintores gostariam de ter obra pendurada ali. Embora de costas, ele sente que o quadro é o seu.

    O garçom traz nova dose. Ele tem repugnância em continuar bebendo, o estômago recebeu mal a dose anterior e a cabeça está vazia, começa a falar, com mais fúria do que som, as palavras saem de uma caixa oca, não fazem sentido, mas significam tudo.

    Ele recua e desce. Agora, está em frente ao quadro. Por um instante se surpreende de ter feito um trabalho aproveitável. Havia muito não pensava nele, mas, apesar da bebedeira e da escuridão, percebe que ali há movimento, o ritmo é excelente. Pode dizer para si mesmo: "Eu me perdi por nada!"

    Levanta o pé, o mais alto que pode. Quer atingir o meio do quadro, mas não consegue. O pontapé pega na moldura, apenas um pequeno canto fica rasgado. O quadro entorta na parede.

    E antes que alguém o contenha, agride e urra. As mãos que deram ritmo àquelas linhas, cores àqueles espaços, são as mesmas que entram pela tela e a mutilam. E rasga, puxa e fura. O pó branco, remanescente das tintas que então usara, arde em suas narinas. Finalmente o quadro cai: é pisado com raiva.

    Desce o restante da escada e percebe que todos estão de pé, olhando-o. Abre a porta. A pele se encrespa ao receber o mormaço da rua. O ar refrigerado fica para trás. Fica para trás o Movimento em Três Tempos. Para ele, não haveria três tempos, não haveria tempo algum nem movimento. Não haveria matéria daquela memória.

    carlos heitor cony

    Escreveu até dezembro de 2017
    carlos heitor cony

    É membro da ABL. Começou sua carreira no jornalismo em 1952 no 'Jornal do Brasil'. É autor de 17 romances e diversas adaptações de clássicos.

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