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    Carlos Heitor Cony

    O barco

    06/11/2016 02h00

    Flavio Sampaio/Divulgação
    Detalhe de passaros pousados em barco de pesca em praia de Tobago Foto Flavio Sampaio /Divulgacao

    RIO DE JANEIRO - O mais importante é o cheiro. Não passa de um velho barco, descascado, cheio de rachas que deixam entrar água. Não é sólido nem belo, embora navegue bem: parece um ataúde desbotado, sem a parte de cima. Tem três bancos, sendo que o da popa é móvel, podendo ser removido para a colocação de um motor. Não passa de uma tábua encaixada nas laterais do barco. Parece um embrião e uma ruína. Mas há o cheiro. Cheiro de marés, areias molhadas, ventos e ondas.

    Foi numa tarde que decidi comprá-lo. Indicaram-me os barcos aportados no canal, eram pesados e enormes. Não me serviam. Num bar onde fui tomar um trago, ouvi dizer que, próximo ao Forte, na enseada que marca o fim da praia, vendiam barcos:

    —Procure o Vavá. Ele tem o que o senhor deseja.

    Aproveitavam o cair da tarde para jogar suas redes. Um velho pescador, apoiado numa canoa em escombros, apontou em direção ao largo:

    — Ele está ali, jogando a rede, depois daquelas pedras.

    — Demora muito?

    —Não. Deve estar de volta, por causa da maré.

    Caminhei pela areia áspera. Ali funcionava uma colônia de pescadores, a praia estava cheia de detritos, pedaços de redes e barcos que haviam entrado em decomposição. Sentei-me para esperar.

    Vi a silhueta de um barco surgindo das pedras que formavam uma espécie de ilha à minha frente. Os remos eram suspensos com cansaço. O remador procurava cortar a correnteza. Teria de vencer o canal, estreito, e logo entraria no remanso das águas que o trariam de volta.

    O pescador apontou:

    –Ai vem o Vavá.

    À distância, o barco parecia uma tábua perdida, resto de naufrágio. Só parecia barco quando os remos faziam brilhar, ao sol da tarde, as suas pás encharcadas. Bem, aí tenho o meu barco.

    Angela vinha vindo, trazida pela tarde. Apertou-me a mão.

    — Como é bonito!

    carlos heitor cony

    Escreveu até dezembro de 2017
    carlos heitor cony

    É membro da ABL. Começou sua carreira no jornalismo em 1952 no 'Jornal do Brasil'. É autor de 17 romances e diversas adaptações de clássicos.

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