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    Claudia Costin

    O navio Saint Louis e os venezuelanos

    11/08/2017 02h00

    Avener Prado/Folhapress
    Em meio a uma crise de abastecimento na Venezuela, centenas de venezuelanos atravessam a fronteira brasileira em Roraima, atrás de comida
    Em meio à crise, venezuelanos atravessam a fronteira brasileira em Roraima atrás de comida

    Ao ler sobre o pedido de ajuda que o governo de Roraima fez às forças de segurança para proteger as fronteiras, há uma clara constatação da grave crise humanitária que assola a Venezuela. Há dificuldades sérias no acesso a medicamentos, alimentos e serviços básicos, o que leva uma multidão a buscar admissão em território nacional.

    O mesmo ocorre em vários países, com populações que deixam seus locais de origem, por conta de conflitos, guerras civis, fome ou perseguições políticas. A possibilidade de famílias oriundas da Síria, de onde, segundo o Acnur, vieram 34% dos que tentaram entrar irregularmente na Europa em 2015, ou do Afeganistão, onde foram 22% no mesmo ano, ficarem em seus países em segurança é nula.

    O que dizer agora dos venezuelanos que, embora não passem por riscos iminentes à sua segurança, sentem a falta de insumos básicos para uma vida decente?

    Em vez de apenas apontar os culpados por essa triste situação, seria importante pensar em como acolher, de forma organizada, os venezuelanos que aqui buscam refúgio e em desenvolver uma estratégia para atenuar seu sofrimento e desesperança. Muitos deles têm formação superior ou qualificação técnica, mas não falam a língua e trazem com eles crianças que precisam estudar.

    Não consigo acompanhar o noticiário a respeito sem lembrar outras multidões que, em época não tão distante, percorriam a Europa em busca de um novo lar ou vinham para o novo mundo, tentando aqui se instalar, ainda temerosas da força de nacionalismos e racismos que poderia entendê-las como estranhas.

    Em seu magnífico livro "Hereges", o escritor cubano Leonardo Padura retoma, de forma ficcional, a dramática saga do navio Saint Louis. Seus 937 passageiros, em sua maioria refugiados judeus, embarcaram em 1939 da Alemanha em direção a Cuba, onde fariam escala antes de seguir para os Estados Unidos. No final, apesar de terem documentos oficiais para desembarcar em Cuba, não foram aceitos em nenhum dos dois países, e acabaram tendo que retornar à Alemanha, onde morreram nas câmaras de gás.

    Hereges
    Leonardo Padura
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    Não tem sido essa, no entanto, a tradição do Brasil. O país, apesar de ter trazido à força africanos para trabalhar como escravos até quase o final do século 19, tem recebido imigrantes e, embora não sem dificuldades, consegue incorporá-los à sociedade brasileira.

    Que possam os venezuelanos que para aqui agora acorrem receber a mesma acolhida que, no pós-guerra, o Brasil destinou a meus pais, que tiveram, certamente, melhor sorte que a dos passageiros do Saint Louis. Não por acaso, deles ouvi com frequência a menção à generosidade do país. Muros nunca mais!

    claudia costin

    É professora da FGV e professora-visitante de Harvard. Foi diretora de Educação do Bird, secretária de Educação do Rio e ministra da Administração. Escreve às sextas-feiras.

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