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    Cláudia Collucci

    Médicos cubanos: deslumbre e penúria

    11/02/2014 03h00

    No momento em que o segundo médico cubano abandona o "Mais Médicos" e procura os Estados Unidos como forma de não voltar a Cuba e que a Associação Médica Brasileira oferece emprego administrativo à primeira médica desertora, vale a pena jogar um pouco de luz no que anda acontecendo nos bastidores do programa do governo federal.

    Primeira questão: Para driblar a Justiça do Trabalho, o governo importou os médicos cubanos na condição de estudantes de pós-graduação. Assim, eles ganham bolsas de estudo (no valor de R$ 900, repassados pelo governo cubano) e não salários. Os médicos brasileiros ou de outras localidades recebem R$ 10 mil depositados integralmente em suas contas. Os médicos (alguns, com mais de 20 anos de profissão) são orientados a fazer cursos mequetrefes e a entrar no site da Unasus de vez em quando para dizer que estão estudando. Até quando vai essa farsa?

    Segunda questão: O Ministério da Saúde contratou vários médicos tutores para "supervisionar" o trabalho dos colegas cubanos, que representam hoje 80% dos profissionais que integram o programa. Cada um recebe R$ 4.000 para supervisionar de sete a dez médicos, que são visitados uma ou duas vezes por mês. Que supervisão é essa?

    Terceira questão: Algumas prefeituras já estão dando um chapéu nos médicos cubanos. Reportagem publicada no jornal "O Estado de S. Paulo" revelou que os cubanos têm trabalhado sem receber o dinheiro da ajuda de custo prometido pelos municípios. Eles estão improvisando repúblicas, vivendo de cestas básicas, recebendo "vale-coxinha" e pagando, do próprio bolso, a passagem de ônibus para fazer visitas do Programa Saúde da Família (PSF). Pelas regras do programa, o Ministério da Saúde paga as bolsas. Cabe às prefeituras arcar com os custos de moradia, alimentação e transporte. Após a reportagem, o governo ameaçou a descredenciar os municípios caloteiros. Cadê a fiscalização do programa?

    Quarta questão e a que mais me interessa: Pelo que apurei com três médicos tutores de São Paulo e seis usuários do SUS de diferentes cidades que receberam os cubanos, todos estão adorando los hermanos.

    "Na média, os cubanos são ótimos. Para muitos deles, a medicina é como um sacerdócio. A população está deslumbrada", comentou um dos tutores, professor da USP. "Eles ouvem a gente, examinam, conversam", conta a faxineira Maria da Conceição Soares.

    Não é à toa que a população está deslumbrada. Há tempos que, por uma razão ou outra (má remuneração dos planos de saúde, excesso de pacientes na rede pública, preferência por áreas médicas mais rentáveis), os médicos brasileiros, salvo as exceções, têm perdido a vocação para o chamado sacerdócio da medicina. Há tempos que prevalece nas consultas médicas a canetada dos pedidos de exames e das prescrições medicamentosas. A pressa, o cansaço e, muitas vezes, a má vontade os impedem de ouvir e de tocar no paciente.

    Contra esse tipo de prática eu não vejo as entidades médicas protestarem. Também não vejo o CFM (Conselho Federal de Medicina), a AMB (Associação Médica Brasileira) e o governo federal se indignarem contra o resultado do último provão do Cremesp, em que 60% dos alunos do último ano de medicina foram reprovados em questões básicas. Por que relutam tanto em apresentar propostas efetivas, como um exame nacional, para melhorar a capacitação dos futuros médicos?

    Também não os vejo levantar a bandeira por uma medicina mais preventiva. Sem médicos e sem governos que invistam de fato em prevenção, estamos assistindo ao adoecimento de uma população, que a cada ano está mais obesa, mais hipertensa, mais diabética e mais deprimida.

    cláudia collucci

    É repórter especial da Folha, especializada em saúde. Autora de "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de 'Experimentos e Experimentações'.
    Escreve às terças.

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