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    Cláudia Collucci

    Carta à dona Rita

    DE SÃO PAULO

    01/04/2014 03h00

    Cara dona Rita:

    Foi com muita perplexidade que li na semana passada sobre o seu drama. Depois de esperar quatro horas por atendimento em um hospital público de São Paulo, a senhora recebeu uma lavagem intestinal no chão. A imagem descrita por sua filha, a Maria das Dores, de a senhora se contorcendo de dor em meio a fezes não me sai da cabeça desde então.

    Lamento, lamento muito, dona Rita, que, aos 87 anos, a senhora tenha passado por tamanha humilhação e dor. Como sempre a corda arrebenta do lado mais fraco, três auxiliares de enfermagem que a atenderam foram sumariamente demitidos pelo governo do Estado. E o assunto parece que morreu aí, quando deveria estar apenas começando para evitar que outros episódios parecidos se repitam.

    A verdade, dona Rita, é que não existe no país a cultura da prevenção de erros dentro dos hospitais. Vigora a cultura da punição, que, sozinha, é claramente ineficaz. Mas, como a senhora bem sabe, os governos querem dar respostas rápidas para evitar o desgaste político, ainda mais neste ano em que a saúde está no centro do debate eleitoral.

    O duro é que o seu caso não é exceção. Quantos outros idosos no país não estão passando pelas mesmas situações humilhantes vividas pela senhora no Hospital Geral de Pedreira?

    Está tudo errado, dona Rita. A começar que idosos deveriam ter prioridade no atendimento nos serviços de saúde e pessoas treinadas para recebê-los. É o mínimo que a sociedade poderia fazer por vocês nessa altura da vida.

    Mas esse é um cenário ainda a ser construído neste país que está envelhecendo numa velocidade jamais vista, mas que parece acometido por uma catarata avançada.

    Não dá para entender, por exemplo, porque a tão falada política nacional de atenção à saúde do idoso não sai do papel. Além dos recursos destinados a ela serem pífios (foram autorizados R$ 28,5 milhões nos últimos três anos pelo governo de Dilma Rousseff), só 50% deles foram utilizados pelo Ministério da Saúde.

    Rivaldo Gomes/Folhapress
    Maria das Dores Alexandre com a mãe, Rita, 87; idosa esperou por 6h em hospital e acabou atendida no chão
    Maria das Dores com a mãe, Rita; idosa esperou por 6 horas em hospital e acabou atendida no chão

    Eu sei que o seu drama não acabou com a lavagem intestinal, dona Rita. A sua filha já disse que a senhora precisa de uma clínica, mas que não há vaga nas públicas e que a família não tem condições de bancar uma particular. Esse é outro problemão para o qual o país não se preparou. Muitos dos seus colegas de geração estão vivendo em condições sub-humanas, sofrendo as mais diversas violências, esperando resignados a morte chegar.

    Minhas duas avós já se foram há mais de duas décadas, dona Rita. Foram cuidadas até o fim por filhas zelosas, cercadas de amor e carinho. Sei que isso tem se tornado cada vez mais raro. O modelo de família mudou, e o país ainda não acordou para isso.

    As questões ligadas ao envelhecimento deveriam estar no centro das prioridades das três esferas de governo (federal, estadual e municipal). Não estão sei lá por quê. Talvez porque todos nós soframos um pouco da tal síndrome de Peter Pan, temos medo de envelhecer, de pensar na decrepitude e na morte.

    E assim vamos vivendo sem nos darmos conta de que, num piscar de olhos, estaremos todos lá: idosos, precisando de cuidados de terceiros.

    Por isso tudo, dona Rita, o seu problema é meu também.

    Com carinho,

    Cláudia

    cláudia collucci

    É repórter especial da Folha, especializada em saúde. Autora de "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de 'Experimentos e Experimentações'.
    Escreve às terças.

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