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    Cláudia Collucci

    Nascer no metrô e morrer em frente ao hospital: duas faces da desassistência

    22/07/2014 12h38

    Quarta-feira, 16 de julho. O segurança Nelson França, 48, passa mal numa lotação e é deixado na porta de um hospital particular em Itaquera, zona leste de São Paulo. Imagens gravadas pela câmera de um celular mostram França se contorcendo e pedindo socorro. Dois homens (que seriam um médico e um enfermeiro do hospital) o observam no chão, sem tocá-lo. O Corpo de Bombeiros é chamado, leva França até um hospital municipal, mas ele já chega morto.

    Quinta-feira, 17 de julho. Grávida de nove meses e sentindo contrações, Maria José da Silva procura um hospital privado em Francisco Morato, na Grande São Paulo, mas não é atendida. Ela e o marido rumam, de trem, para outra maternidade, na zona leste, que aceitasse o seu plano de saúde. Na Barra Funda, pegam o metrô, mas as dores ficam mais fortes. A bebê Caiane nasce, no chão da estação Santa Cecília, com a ajuda de uma segurança do Metrô.

    Duas histórias com desfechos diferentes, mas com as mesmas faces: a da desassistência. Quando a falta de socorro explícita acaba em morte, como ocorreu com o segurança, é enquadrada como crime. Homicídio doloso (intencional), também chamado dolo eventual, quando a pessoa assume o risco de matar.

    Maria e a filha Caiane tiveram sorte. A natureza fez o seu papel com a ajuda dos funcionários do Metrô, conforme reportagem exibida no "Bom Dia São Paulo" na última quinta-feira. Mas foi um risco assumido pela equipe do hospital privado de Francisco Morato (a reportagem não diz o nome). Não se libera uma mulher em trabalho de parto à sua própria sorte, entre baldeações de trem e metrô. Se o pior tivesse acontecido, a fachada do hospital certamente estaria estampada nas TVs e jornais. Mas como tudo deu certo, o erro é esquecido e tudo ficou no "oba-oba".

    "Que legal!", "que venham outros nascimentos [no metrô]", "que venham outras Caianes", foram algumas das pérolas ditas pelos apresentadores da Rede Globo ao término da reportagem. Não tem nada de "legal" nascer no metrô, minha gente. Nem nos carros da polícia e dos bombeiros, como tantas outras reportagens já mostraram.

    Em casa, em salas de parto ou no hospital, o parto requer assistência de profissionais habilitados, preparados para resolver qualquer intercorrência. Uma coisa é uma situação emergencial, outra coisa é essa falha gritante no serviço de assistência à gestante. No passado, essa peregrinação de grávidas, batendo de hospital e em hospital, era muito comum no âmbito do SUS. Com o programa "Mãe Paulistana", que assiste a gestante durante a gravidez, o parto e o puerpério, isso melhorou. Será que vamos assistir agora ao retorno dessas cenas pavorosas em hospitais da rede privada?

    O caso de Nelson França dispensa maiores comentários. É crime mesmo, muito semelhante ao que aconteceu com o fotógrafo Luiz Claudio Marigo, 63, no dia 2 de junho. Ele estava dentro de um ônibus e, ao passar mal, foi levado até o INC (Instituto Nacional de Cardiologia). Morreu sem atendimento, em decorrência de um infarto, em frente ao hospital que é tido como ilha de excelência em cardiologia no Brasil.

    A questão é uma só: seja em hospital público, seja em privado, um paciente que chega passando mal não pode ser recepcionado por um segurança ou pela atendente da portaria. Alguns minutos podem fazer toda diferença entre continuar vivo e morrer. É preciso que um profissional de saúde faça o primeiro contato e avalie rapidamente o risco de morte. Depois disso, cuida-se da burocracia, da transferência para outra unidade ou coisas do gênero.

    No caso de Marigo, fotógrafo renomado cuja morte ganhou repercussão nacional e internacional, a polícia agiu rapidamente: o presidente e nove funcionários do INC foram indiciados por homicídio doloso. Será que a morte do segurança Nelson França, pai de três filhos e morador em Cidade Tiradentes, terá o mesmo tratamento?

    cláudia collucci

    É repórter especial da Folha, especializada em saúde. Autora de "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de 'Experimentos e Experimentações'.
    Escreve às terças.

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