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    Cláudia Collucci

    Congelar óvulos não é como congelar hambúrguer

    21/10/2014 02h00

    O Facebook e a Apple anunciaram recentemente que pretendem pagar pelo congelamento de óvulos das funcionárias dos EUA que queiram investir na carreira profissional e adiar a maternidade.

    No jargão médico, isso se chama "preservação da fertilidade". A ideia seria sensacional se o mundo funcionasse como um relógio. Só que não.

    O congelamento de óvulos envolve várias questões, que passam por riscos do procedimento e a pouca garantia de que, no final de tudo, haverá um bebê no berço.

    As mulheres normalmente produzem um óvulo por ciclo, mas altas doses de hormônio, necessárias para o congelamento, podem fazê-las produzir de 20 a 30 ou até mais.

    Só que isso pode levar a um risco que poucos médicos mencionam: a síndrome da hiperestimulação ovariana, uma situação em que os ovários ficam inchados e podem vazar fluidos no tórax e no abdômen.

    Nos EUA, 10% dos ciclos de FIV (fertilização in vitro) resultam nessa síndrome. Em situações extremas, pode levar à morte. Em 2012, ela figurava entre as principais causas de mortalidade materna no Reino Unido e no País de Gales.

    Há também riscos na aspiração desses óvulos, que é feita com sedação profunda e usando um ultrassom acoplado a uma agulha. Ainda que raro, existe a possibilidade de perfuração de algum órgão durante o procedimento. Tenho uma amiga que teve o intestino perfurado.

    Um segundo ponto é a falta de garantia. Médico nenhum pode prometer a uma mulher de 30 anos que, se congelar hoje seus óvulos (e pagar R$ 12 mil, em média, e taxa mensal de R$ 100 para manter os óvulos congelados na clínica) vá conseguir ter seu tão sonhado bebê aos 40 anos.

    Na melhor das hipóteses, ela precisará de 15 óvulos para que, no futuro, tenha de dois a quatro embriões. Desses, metade pode apresentar anormalidades genéticas e terá de ser descartada. Com muita sorte, haverá 70% de chances de engravidar em até três tentativas (se é que terá embrião para três tentativas).

    Congelar óvulo não é como congelar hambúrguer, como diz um amigo médico. No afã de conquistar clientela, há muito médico vendendo gato por lebre. E muita mulher desavisada comprando.

    Por isso, antes de se decidir pelo procedimento, tenha em mente que o melhor SEMPRE é tentar ser mãe na fase da vida em que o corpo, em tese, tem condições plenas para isso, ou seja, antes dos 35 anos.

    Mas, se isso não for possível, seja porque ainda não apareceu o pai do seu rebento, seja porque você prioriza a vida profissional ou ainda porque não se sente preparada emocionalmente para ser mãe, exija esclarecimento, por escrito, das seguintes questões:

    1. Quais os riscos que eu tenho em todas as fases do tratamento, da produção à coleta dos óvulos?
    2. Qual o índice estimado de fertilização dos óvulos após o descongelamento?
    3. Qual o índice de embriões saudáveis após o exame pré-implantacional?
    4. Qual a chance a cada tentativa de gravidez? (Pergunte literalmente a cada tentativa porque essa história de somar três tentativas para se chegar a 70% é muito bonito na estatística. Na vida real, três tentativas equivalem a três vezes mais dinheiro e mais estresse.)
    5. Qual a chance real de eu ter o bebê? (Parece uma pergunta meio sem sentido mas não é. O índice de abortos espontâneos nas primeiras semanas de uma gravidez natural gira em torno de 20%. Alguns estudos sugerem que na FIV pode ser maior, mas ainda não há nada conclusivo.)

    É por essas e outras razões que a França e outros países europeus proíbem ou não recomendam o congelamento de óvulos de mulheres saudáveis. A exceção fica apenas para aquelas com um diagnóstico de câncer e que serão submetidas a quimioterapia.

    O tratamento pode causar uma menopausa precoce e, com ela, a esterilidade. Nos EUA, porém, onde o mercado manda, o negócio vai de vento em popa. A ponto de as duas empresas mencionadas acima oferecerem o congelamento de óvulo como política (bem controversa) de RH.

    Por que, em vez de oferecer congelamento de óvulos, não dão condições de trabalho mais favoráveis às mulheres que desejam ser mães?

    cláudia collucci

    É repórter especial da Folha, especializada em saúde. Autora de "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de 'Experimentos e Experimentações'.
    Escreve às terças.

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