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    Cláudia Collucci

    Também morri um pouco em Castelo do Piauí

    15/06/2015 14h07

    Não foi só Danielly Feitosa, 16, que morreu vítima de estupro coletivo em Castelo do Piauí. No sentido figurado, todos nós morremos um pouco com a barbárie.

    As meninas sobreviventes, entre 15 e 17 anos, morreram um pouco a partir daquela tarde de 27 de maio. Como esquecer duas horas de abuso sexual e espancamento por cinco homens? Como esquecer a queda de oito metros precipício abaixo? Como esquecer, por fim, as pedradas?

    As amigas que não estavam no grupo também morreram um pouco. Érica Lorena, 20, não dorme direito desde então. Chora muito e pensa a todo momento no sofrimento de Danielly. "Por que tanta maldade?", questiona.

    Os pais de Danyelle também morreram um pouco ao perder a filha adorada de modo tão cruel. "Uma doença, um acidente, talvez fosse mais fácil aceitar. Mas uma monstruosidade dessas? Como?", indaga Jorge Feitosa, o pai.

    Os pais das meninas sobreviventes também morreram um pouco ao imaginar que poderia ter sido eles a enterrar suas filhas. Ainda não sabem como será a vida a partir de então. "Elas tinham tantos sonhos. Tomara que sobre alguns" disse o pai de J., 15.

    A escola onde Dany e suas amigas estudavam também está um pouco morta. Estudantes estão assustados, choram e não querem mais ir à aula. "A Salles Martins [nome da escola] nunca mais será a mesma", prevê a diretora Lucineide.

    Os pais dos meninos acusados de estupro também morreram mais um pouco. Alguns deles, aliás, já vinham morrendo lentamente há muito tempo. O aposentado Manoel, 63, desde o filho I.V.I, 15, um dos acusados do crime, entrou para o mundo das drogas, dos furtos e dos roubos. Aos oito anos.

    "A mãe levava ele para a escola e ele fugia. Não ouvia ninguém. Pegava tudo o que tinha em casa pra trocar por droga." O menino estudou até a terceira série do ensino fundamental.

    Elisabeth, 35, mãe de outro acusado, G.V.S. 15, morria um pouco a cada dia em que ia ao Conselho Tutelar pedindo para que internassem seu filho e encontrou as portas fechadas. Dependente de droga desde os 13 anos e autor de vários furtos, o adolescente abandonou a escola na sexta série do ensino fundamental.

    Agora, Elisabeth morre um pouco mais cada vez que um morador da cidade lhe vira as costas ou que cospe no chão quando ela passa.

    A mãe, grávida de três meses do sétimo filho, tem outras razões para continuar morrendo. No casebre de um cômodo onde vive, diariamente ela tenta proteger as quatro filhas pequenas (gêmeas de seis anos, e duas outras de 9 e 12 anos) do filho mais velho.

    Aos 19 anos, com deficiência mental grave (ninguém sabe o diagnóstico correto) e sem acompanhamento médico, ele tenta "bulinar" (abusar sexualmente) as irmãs. "É fraco das ideias. Eu é que tenho de proteger as meninas."

    Eu também morri um pouco em Castelo do Piauí.

    cláudia collucci

    É repórter especial da Folha, especializada em saúde. Autora de "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de 'Experimentos e Experimentações'.
    Escreve às terças.

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