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    Cláudia Collucci

    'A sociedade vive o paradigma da medicina baseada em fantasia'

    10/11/2015 02h00

    Por que a comunidade médica se viu surpresa com a liberação do uso da fosfoetanolamina (droga que supostamente trata o câncer) pelo STF (Supremo Tribunal Federal) se o mundo real está repleto de condutas indicadas por profissionais da saúde sem nenhum embasamento científico? A provocação é do cardiologista Luis Correia, professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e da Escola Bahiana de Medicina, autor do blog Medicina Baseada em Evidências.

    "Vivemos em um país cujo Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira reconhecem a homeopatia como especialidade médica. Paradoxalmente, as evidências científicas de qualidade são consistentes em demonstrar que o efeito da homeopatia não supera a eficácia do placebo. A informação está presente em revisões sistemáticas de boa qualidade."

    Para ele, talvez a homeopatia mereça um reconhecimento como um tipo de intervenção baseada em fé. Ter crenças é coisa comum da raça humana e às vezes faz bem. "Porém isso não é a mesma coisa que medicina, isso é diferente de especialidade médica. Eticamente, ao receber tal prescrição, um cliente deveria ser informado de que os trabalhos de qualidade indicam que o efeito decorrente da homeopatia é equivalente ao placebo."

    Correia lembra que o parlamento inglês baniu homeopatia do sistema público de saúde, proibindo também que qualquer verba pública fosse utilizada para financiar pesquisa nessa área. A Organização Mundial de Saúde, após provocada, publicou um documento em 2009, afirmando que homeopatia não é eficaz para HIV, tuberculose, malária, diarreia e gripe.

    VIOLAÇÕES

    Mas o problema não acontece apenas com tratamentos alternativos. Mais comum ainda são violações que utilizam condutas mais tradicionais, porém sem comprovação definitiva. Correia lembra que na década de 90, os cardiologistas propuseram o uso da terapia de reposição hormonal como forma de reduzir o risco de infarto, já que trabalhos científicos sugeriam esse efeito. Esses trabalhos, porém, ainda não tinham metodologia científica adequada. "Anos depois, no início da década de 2000, o grande ensaio clínico randomizado negou esse efeito protetor. E, pior, mostrou pequeno aumento do risco de infarto com o tratamento. Constrangimento desnecessário, poderíamos ter esperado as evidências", diz ele.

    O médico também cita o caso da sibutramina para redução de peso. Depois de anos de uso da droga, um ensaio clínico desenhado para testar a eficácia dela na redução de eventos cardiovasculares demonstrou ausência de benefício. "Havíamos utilizado uma droga que tem reconhecidos efeitos adversos (não proibitivos, se houvesse um benefício concreto), sem um grande motivo. Nem para perder peso a droga faz tanta diferença, pois em média a perda de peso foi apenas 2.4 Kg maior do que no grupo placebo (dieta). Segundo ele, não faz sentido os endocrinologistas "espernearem" contra a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que restringiu a prescrição da droga. "Nem precisaria restringir se os médicos não tivessem a mania de supervalorizar benefícios tênues."

    Correia cita outros exemplos e afirma que "não é incomum médicos" prescreverem tratamentos questionáveis do ponto de vista de eficácia, efetividade ou eficiência, e orientarem pacientes a conseguir liminares de juízes para que convênios ou o SUS cubram os custos.

    Há explicações cognitivas para essa postura não científica. "Nossa mente é naturalmente crente, sendo necessário um certo esforço para assumir uma postura cientificamente cética e fazer uma análise baseada em evidências."

    Evoluímos tomando decisões intuitivas (sistema límbico), pois a decisão rápida nos ajudava a fugir e sobreviver. Temos dificuldade em conciliar o pensamento intuitivo com o pensamento analítico (cortical)."

    Na opinião de Correia, além de criticar a decisão do STF, a comunidade médica deveria reconhecer sua responsabilidade como parte desse processo. "A sociedade vive o 'paradigma da medicina baseada em fantasia' em parte porque nós, profissionais de saúde, usamos deste paradigma quando adotamos tratamentos não comprovados ou realizamos exames de forma exagerada e inapropriada."

    O médico finaliza com uma frase que deveria constar nos códigos de ética médica: "Profissionais de saúde devem assumir a responsabilidade de moldar o pensamento da sociedade na direção de uma medicina contemporânea e de vanguarda: embasada no paradigma científico, no benefício ao cliente, na racionalidade das decisões e, por fim, na decisão compartilhada com um cliente que é devidamente informado dos riscos, benefícios e incertezas de nossas recomendações."

    cláudia collucci

    É repórter especial da Folha, especializada em saúde. Autora de "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de 'Experimentos e Experimentações'.
    Escreve às terças.

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