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    Cláudia Collucci

    Falta de transparência move o motor das fraudes na saúde

    29/11/2016 02h02

    Leticia Moreira/Folhapress
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    Nunca me esqueço da expressão de surpresa do meu marido quando me ouviu contando, pela primeira vez, sobre médicos e hospitais que fazem cirurgias desnecessárias só para embolsar dinheiro da indústria de órteses e próteses.

    Assim como ele, todos nós tendemos a alimentar a imagem do médico como um ser incapaz de fazer, deliberadamente, o mal. Ficamos chocados quando vem a informação de que, sim, ele, como qualquer outro profissional, pode cometer crimes.

    Em janeiro, completa dois anos em que veio à tona a denúncia sobre a "máfia das próteses". O que antes eram apenas conversas reservadas no meio médico, sempre anônimas, virou tema de uma ampla investigação da Polícia Federal e de CPIs na Câmara dos Deputados, com muitos processos e prisões.

    Um dos últimos esquemas desbaratados ocorreu no Distrito Federal em setembro último. Treze pessoas foram presas na operação, entre elas sete médicos de um hospital particular, dois empresários fornecedores de próteses, diretores do hospital e outros funcionários.

    Ao menos 60 pacientes podem ter sido vítimas da quadrilha (sem contar os planos de saúde que pagaram essa conta fraudulenta). O esquema envolvia cirurgias desnecessárias, superfaturamento de equipamentos, e uso de material vencido.

    Entre os crimes, há casos de cirurgias sabotadas para que os pacientes precisassem ser reoperados, gerando lucros para o esquema. A polícia investiga ainda se o grupo tentou matar uma paciente para evitar que ela os delatassem.

    Na semana passada, o assunto sobre as fraudes envolvendo órteses e próteses foi debatido no fórum de saúde suplementar, que aconteceu no Rio de Janeiro. Para tentar se proteger contra indicações desnecessárias de cirurgias, as operadoras têm realizado várias ações.

    Irlau Machado Filho, presidente do Grupo NotreDame Intermédica, relatou, por exemplo, que a empresa adotou uma segunda opinião médica e orientações de conselhos de classe e de serviços médicos de referência. Com isso, os processos decorrentes de liminares na Justiça caíram de 57% para 33%.

    "Antigamente, não denunciávamos o médico, mas em defesa do paciente, que é o que mais sofre, hoje estamos partindo para a denúncia. São poucos profissionais que acabam colocando a reputação dos demais em questionamento. Temos que combater a prática", afirmou.

    O médico Edmond Barras, chefe do serviço de clínica e cirurgia da coluna vertebral do Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, calcula que 60% dos casos de cirurgias em coluna sejam desnecessários.

    "A grande vítima é o paciente. Sempre que se realiza uma cirurgia sem necessidade, o resultado é ruim. Mas como duvidar do diagnóstico de um médico?", questionou.

    Um bom exemplo sobre os absurdos que acontecem nessa área é o programa de coluna do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Com adoção de um modelo de segunda opinião, reduziu em 58% a necessidade de cirurgias para casos já diagnosticados como cirúrgicos.

    A pergunta que não quer se calar é: por que essa iniciativa não foi replicada em todos os grandes hospitais? A resposta é simples. Porque contraria muitos interesses. A equipe do Einstein recebeu muitas pressões por parte de médicos, inclusive, foi chamada a prestar esclarecimentos ao Cremesp (conselho regional de medicina).

    MODELO DE REMUNERAÇÃO

    No caso da "máfia das próteses", é bom lembrar que o médico não age sozinho. Muitas vezes, o hospital também é corresponsável por esses crimes. Ou porque participa diretamente do esquema, como aconteceu no Distrito Federal, ou porque faz vistas grossas, já que o médico é o "dono do paciente". Em outras palavras, é ele, muitas vezes, que leva "clientes" para os hospitais.

    O atual modelo de remuneração dos hospitais (quanto mais procedimentos, maior o lucro) também é um prato cheio para as más práticas em saúde (como exames feitos sem necessidade).

    Todos perdem. Principalmente nós, pacientes, que corremos riscos desnecessários e que, no final, vamos pagar essa conta no boleto do plano de saúde.

    Muito tem se falado sobre "compliance" no setor da saúde, ou seja, na obrigação das empresas e todos os colaboradores em cumprir leis e regulamentos, com foco na ética. Sei que há um esforço de várias entidades nesse sentido, mas é preciso ir fundo nesse conceito e não ficar apenas na perfumaria dos manuais de ética.

    Os hospitais, por exemplo, poderiam começar por abrir suas contas, consideradas verdadeiras caixas-pretas, e os seus indicadores de qualidade, como taxas de infecção hospitalar, de mortalidade, de eventos adversos, de reinternação, etc. Cada hospital define hoje suas diárias, não há coerência dos valores cobrados e nem especificação dos produtos utilizados.

    Também dariam uma grande lição de ética se apoiassem, de fato, a mudança do modelo de remuneração, passando a receber pelo desfecho clínico (pagamento por performance). Ou seja, quanto mais efetiva a assistência, maior a remuneração. Entidades médicas também deveriam abraçar essa ideia. Planos de saúde, idem. Mas, para isso, precisariam fazer um "pente-fino" em seus prestadores de serviço e se engajar, de fato, na busca por melhores práticas assistenciais. E não apenas na redução de despesas e maior lucro.

    A falta de transparência no setor da saúde pública e privada é o motor que move a "máfia das próteses" e tantas outras fraudes que presenciamos no setor. Sem tocar nisso, não há chance de sustentabilidade financeira ou assistencial.

    cláudia collucci

    É repórter especial da Folha, especializada em saúde. Autora de "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de 'Experimentos e Experimentações'.
    Escreve às terças.

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