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    Cláudia Collucci

    Que espécie de médico as escolas brasileiras estão formando?

    07/02/2017 02h00 - Atualizado às 07h40

    Livro "Centro Acadêmico Oswaldo Cruz: A História dos Estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo"
    Professores e alunos, em 1916, em livro sobre a história dos estudantes de medicina da USP
    Professores e alunos, em 1916, em livro sobre a história dos estudantes de medicina da USP

    A divulgação da tomografia e de dados sigilosos do diagnóstico da ex-primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva, seguida de mensagens de ódio de médicos, resultou em duas sindicâncias no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), demissão de dois doutores e muita confusão nas redes sociais.

    Muitos médicos condenaram as atitudes antiéticas de colegas e o ódio partidário manifestado em mensagens. Mas vários outros, em grupos fechados no Facebook, defenderam os acusados e o direito de expressar o ódio aos petistas.

    O episódio chocou muita gente. Como pode um médico desejar e até incitar a morte de alguém? E os princípios éticos de "exercer a medicina sem discriminação de nenhuma natureza", "guardar absoluto respeito pelo ser humano e atuar sempre em seu benefício" e "guardar sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções"?

    A verdade é que o "episódio Marisa", além de trazer à tona um lado abjeto da polarização política que o país vive hoje, expôs uma ferida que precisa de tratamento urgente: a formação médica. Afinal, que espécie de médico as escolas médicas estão formando? Os conteúdos éticos e humanistas têm sido contemplados como indissociáveis à boa prática clínica?

    Um recente texto da "Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares" jogou um pouco de luz nessa questão. Compartilho com vocês abaixo:

    *

    "Na trajetória da formação de um médico no Brasil, vamos sendo submetidos aos poucos, em doses homeopáticas, a abusos e absurdos. Seja em um ambulatório de ginecologia na faculdade onde dez estudantes fazem o toque vaginal na mesma paciente –'é para que eles aprendam, diz o professor à paciente'. Seja em um plantão de pronto-socorro onde se aprende a tratar os pacientes de um jeito e os 'bandidos' de outro: sem analgésicos, tratados sem o mínimo de empatia e manejados com força desproporcional, como se aqueles que estão ali para cuidar da vida humana quisessem sentir o gosto de "revidar" o mal que supostamente fez o cidadão.

    Aprendemos a aceitar que receber trotes violentos 'faz parte', pelo simples fato de que nos próximos cinco anos poderemos 'descontar' nos próximos calouros. Aprendemos que fazer plantões ilegais em pequenas cidades no interior, nos passando por médicos, não tem problema, afinal, se não fossem estes cidadãos altruístas, quem atenderia os pobres coitados?

    Aprendemos a ficar calados com os abusos que passamos na residência médica, desde cargas horárias excessivas até assédio moral dos preceptores. Aprendemos a ouvir calados os impropérios de chefes dos serviços em nome de manter um bom ambiente de trabalho. Tudo isso para 'engrossar a casca', dizem. Com todo esse aprendizado, nos parece que a resiliência é a maior habilidade desenvolvida pela nossa categoria, afinal, se formam muitos médicos e médicas éticos, humanos e comprometidos com a vida.

    O episódio do vazamento dos exames da ex-primeira-dama traz à tona essas questões. As tomografias de Marisa Letícia percorreram vários grupos de WhatsApp, de São Paulo para todo o país, e foram recebidas da forma mais natural possível, como se fosse algo corriqueiro receber no celular exames de um paciente que não está sob seus cuidados. Discutir casos com a equipe do próprio hospital nesses grupos, no qual todos são obrigados ao sigilo médico e com o intuito de elucidar diagnósticos, é uma coisa.

    Mas, neste caso, a quebra do sigilo médico foi notória. O pior é que alguns dos que vazaram o exame não o fizeram com o intuito de discutir um caso clínico, mas sim para tripudiar em cima do sofrimento humano. Não há polarização política que justifique atos como esse.

    Nestes momentos, nossa categoria fica exposta, na berlinda, com nossos pacientes se perguntando: "Será que isto acontece comigo?". De forma absolutamente estarrecedora, nos deparamos com comentários de indivíduos que nunca deveriam ter se formado médicos, que não possuem o mínimo de humanidade e ética. Infelizmente é preciso lembrar que há mais destes prestes a se formar, e que é preciso fazer alguma coisa, em nome daqueles que exercem a medicina de forma digna e principalmente em nome de nossos pacientes."

    *

    A sociedade precisa urgentemente se envolver na discussão da formação médica, do ponto de vista ético e técnico. Há dez anos, o provão do Cremesp vem reprovando quase metade dos recém-formados nas escolas médicas paulistas. Muitos jovens médicos desconhecem o diagnóstico ou tratamento adequado de casos básicos e problemas de saúde frequentes.

    O fraco desempenho dos alunos é explicado por vários fatores, entre eles a estrutura deficiente das faculdades, a péssima avaliação interna dos alunos e a falta de punição às escolas ruins. O governo federal sabe quais são as faculdades de baixa qualidade, mas pouco ou nada faz para impedir que elas continuem despejando no mercado maus profissionais.

    A iniciativa do Cremesp tem apoio de empregadores e do governo do Estado de São Paulo, mas não encontrou eco no resto do país. Nem mesmo entre nós, sociedade, que estamos assistindo a isso tudo calados, como se não fôssemos as vítimas em potencial desses "doutores".

    cláudia collucci

    É repórter especial da Folha, especializada em saúde. Autora de "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de 'Experimentos e Experimentações'.
    Escreve às terças.

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