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    Cláudia Collucci

    No país da disparidade, a difícil tarefa de decidir quem deve ir para a UTI

    30/03/2017 16h42

    "Começamos outro dia de trabalho às 7h da manhã, e mais uma vez precisamos decidir quem vai receber uma cama na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) após um procedimento cirúrgico eletivo. Uma avó de 55 anos com câncer de cólon? Um homem idoso com metástases hepáticas? Uma mulher jovem que sofre de dor que precisa de uma artrodese (cirurgia na coluna) para continuar trabalhando para que ela possa a alimentar sua família? Devemos escolher ou negar pacientes porque eles têm câncer? Devemos escolher com base na idade? Sobre a qualidade de vida anterior dos pacientes? Ou sobre o impacto social, por exemplo, se um paciente tem quatro filhos para criar? Devemos dar a cama a um paciente que já tivemos que recusar uma vez? Ou talvez devêssemos simplesmente parar de brincar de Deus e entregá-la a quem primeiro pedir?"

    *

    Ao conhecer de perto a caótica situação do atendimento dos infartados em Sergipe, voltei a me lembrar desse ótimo editorial publicado na revista "The New England Journal of Medicine", de dezembro último, escrito pela médica Flávia Machado, coordenadora do Ilas (Instituto Latino Americano de Sepse).

    No texto, Flávia relata o dia a dia de profissionais de saúde que têm que decidir sobre cirurgias eletivas e, principalmente, a ocupação dos leitos de UTIs públicas no Brasil. É uma reflexão excelente, que, infelizmente, não saiu do ambiente médico. Não ganhou as ruas e nem as redes sociais.

    Como podemos defender a igualdade nos cuidados de saúde, prevista na Constituição Federal, se claramente há disparidades gritantes sob todos os pontos de vista? Como pode 75% da população brasileira, usuária do SUS, terem 9,9 leitos de UTI por 100 mil habitantes e os outros 25%, usuários de planos, terem quatro vezes mais (41,4 leitos por 100 mil)?

    As diferenças de acesso e de desfechos clínicos são ainda mais marcantes nos Estados mais pobres do país. Em Sergipe, por exemplo, a taxa de mortalidade do paciente SUS por infarto é o dobro daquela dos doentes com planos de saúde.

    Ano passado, por outra base de dados, o Ilas chegou a resultados parecidos extensivos ao país todo. Pacientes vindos de prontos-socorros públicos tinham 53,17% de taxa de mortalidade, enquanto os doentes dos PS de hospitais privados, 25,8%. Possíveis explicações para essa diferença incluem dificuldade no reconhecimento precoce da sepse e um número inadequado de profissionais nos PS de hospitais públicos.

    Mas quem se importa com os pobres morrendo de infarto ou de sepse? Quem se importa com a dona Maria Francisca do Nascimento, 68 anos, que num sábado estava saudável e cheia de planos e cinco dias depois já estava condenada à morte porque, infartada, não teve um atendimento rápido? Quem se importa com o "seo" José Izídio de Santana, 79, que passou 48 horas infartado sentado numa cadeira por falta de vaga na UTI?

    Na obra "Indigvai-vos!", o nonagenário autor Stéphane Hessel faz um apelo para que as pessoas saiam da indiferença, despertem da inércia individualista e resistam, retomando aspirações coletivas. Diz ele: "Olhem ao seu redor e encontrarão fatos concretos que justificam sua indignação". A situação caótica da saúde pública brasileira, a dor do meu semelhante e as mortes evitáveis me indignam e deveriam indignar a você também.

    cláudia collucci

    É repórter especial da Folha, especializada em saúde. Autora de "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de 'Experimentos e Experimentações'.
    Escreve às terças.

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