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    Clóvis Rossi

    Uma guerra sem tiros

    06/03/2014 03h00

    Para seu padrão habitualmente truculento, até que Vladimir Putin, o presidente russo, foi moderado na sua primeira intervenção pública para falar da crise ucraniana.

    Descartou anexar a Crimeia e ainda deixou claro que o uso da força na Ucrânia seria somente como "ultimo recurso", além de ter devolvido aos quartéis as tropas que faziam exercícios perto da fronteira.

    É possível especular as razões da moderação a partir de uma frase do próprio Putin, quando perguntado sobre as sanções que as potências ocidentais ensaiam (molemente) implementar contra a Rússia.

    "No mundo moderno, em que tudo está relacionado e em que todos dependem de todos, é óbvio que [as sanções] podem causar dano, mas o dano será recíproco", disse o presidente russo.

    Bingo.

    Comecemos pela arma de uso mais imediato que a Rússia poderia acionar como retaliação a sanções europeias. É o gás. A Europa, de fato, importa da Rússia 30% de todo o gás que consome.

    Mas a Rússia também depende do mercado europeu para 24% de suas exportações totais. Mexer com o gás é mexer com 70% das exportações russas globais e com 50% das receitas do governo.

    Pior, para a Rússia: os contratos gasíferos são de longo prazo, exatamente para dar previsibilidade ao fornecimento, o que significa que cortar as remessas ou aumentar os preços seria romper contratos, um tiro no próprio pé.

    Para a Europa, o comércio com a Rússia, nos dois sentidos, movimenta suculentos US$ 340 bilhões, o que explica a enorme cautela com que se movem os dirigentes europeus.

    De todo modo, sanções econômicas dificilmente fariam a Rússia voltar atrás da ocupação da Crimeia.

    A Rússia, aliás, nem precisa anexar a Crimeia. A base que lá possui, "leasing" que irá até 2042, podendo ser prorrogado até 2047, lhe assegura na prática os meios para controlar a península e para proteger a maioria de origem russa que nela habita.

    No restante da Ucrânia em que há minorias russas numerosas, a tática parece já estar desenhada: forçar a realização de plebiscitos com vistas a obter autonomia ou, no limite, a independência.

    Seria a transformação de uma Ucrânia hoje unitária em uma federação, talvez uma confederação.

    É, não por acaso, a proposta de Ser­guei Gla­zev, asse­ssor de Pu­tin pa­ra te­mas da Co­mu­ni­dade de Es­ta­dos In­de­pen­den­tes (o conglomerado de ex-satélites soviéticos): uma pro­fun­da fe­de­ra­li­za­cão das re­giões Les­te e Sul da Ucrâ­nia (pró-Rússia), com a possibilidade de que essa parte do país participe da Comunidade Eco­nômi­ca Eu­ra­siá­ti­ca (Rússia, Cazaquistão, Uzbequistão e Turcomenistão), enquanto a Ucrânia Ocidental ficaria para a Europa.

    Seria a maneira de permitir a Putin que mantivesse a obsessão com a remontagem, ainda que parcial, do império russo, sem o uso da força, ao mesmo tempo em que os ucranianos poderiam sonhar o sonho europeu que foi o combustível para as grandes manifestações que derrubaram Viktor Yanukovich.

    Falta combinar com os russos, digo, com os ucranianos.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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