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    Clóvis Rossi

    O Brasil demite-se do mundo

    20/03/2014 03h20

    O embaixador ucraniano no Brasil, Rostyslav Tronenko, pôs no papel o que inúmeros outros diplomatas pensam a respeito da posição do Brasil na crise ucraniana (ou melhor, da falta de posição brasileira).

    Escreveu Tronenko: "Pedimos às nações do mundo e ao Brasil que não fiquem em silêncio e se distanciem desse ato de agressão" (referindo-se, como é óbvio, à ocupação da Crimeia).
    Pena que, a julgar pelas informações de Eliane Cantanhêde, o pedido não será atendido. Nem para se distanciar nem para se aproximar.

    São insustentáveis os argumentos que, segundo Eliane, o governo Dilma Rousseff usa para se calar. Primeiro, haveria uma ordem para que o Brasil não se meta em assuntos de países longínquos.

    Tolice: com a globalização e a interligação de todos com todos, não há mais país ou região distante.

    Mais: se é verdadeira essa instrução, ela é uma crítica impiedosa às ações de seu padrinho e antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva. Ele meteu-se, com fanfarras e tudo, no dossiê nuclear iraniano, chegando até a um acordo que estava muito próximo do que pedia o presidente norte-americano Barack Obama. Ou seja, não foi uma intervenção canhestra, ainda que, a posteriori, os EUA a tenham desconsiderado.

    O argumento de Dilma, aliás, coincide em cheio com a dos críticos da política externa de Lula, também contrários ao envolvimento em assuntos que parecem remotos.

    Outros países parecem não compartilhar dessa impressão, tanto que convidaram o Brasil para participar de uma conferência em Annapolis (EUA), em 2007, uma das incontáveis iniciativas de tentar um acordo de paz entre Israel e os palestinos.

    A Palestina é tão ou mais distante do Brasil do que a Ucrânia, o que não fez Lula desistir.

    O segundo argumento é o de que Dilma não quer cutucar o presidente Vladimir Putin, com medo de que ele não venha à cúpula dos Brics, este ano prevista para Fortaleza. Outra tolice: com o isolamento a que está sendo empurrado pelas grandes potências, Putin precisa mais dos Brics do que os Brics dele.

    O governo brasileiro nem precisa atender literalmente o pedido do embaixador Tronenko. Ou seja, não precisa tomar posição a favor da Ucrânia. Mas tem que tomar alguma posição. Não pode ficar em silêncio sobre um episódio que está causando a mais grave crise entre o Ocidente e a Rússia desde o fim da Guerra Fria.

    Os argumentos para condenar a anexação da Crimeia são realmente mais abundantes e mais poderosos e foram extensamente analisados no editorial de ontem da Folha.

    Mas é possível torturar o direito internacional para aceitar que os russos da Crimeia estavam sob ameaça, circunstância que autorizaria a separação. A limpeza étnica promovida pela Sérvia contra os albaneses do Kosovo forneceu argumento para reconhecer a independência kosovar. Na Crimeia, não houve algo parecido, mas os russos da península podiam de fato sentir-se em risco.

    O que não dá para aceitar é que o Brasil silencie, como se não fizesse mais parte do mundo.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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