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    Clóvis Rossi

    A verdade e suas versões

    24/04/2014 03h08

    A melhor definição de reportagem que conheço pertence a Carl Bernstein, um dos dois repórteres do "Washington Post" que desvendaram o caso Watergate e, com isso, levaram à renúncia do presidente Richard Nixon.

    Em palestra na USP, Bernstein a definiu como "a melhor versão da verdade possível de se obter".

    É isso. Começa por duvidar implicitamente que exista uma VERDADE, assim maiúscula e incontrovertida. E continua por propor um exaustivo trabalho para chegar o mais perto possível de uma versão verossímil.

    Se essa definição é correta, as comissões da verdade instaladas no Brasil estão com um problema: em vez de chegarem à melhor versão da verdade possível de se obter sobre a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, chegaram a duas "verdades", diametralmente opostas, o que significa que uma delas é necessariamente falsa.

    Para a Comissão Nacional da Verdade, JK foi vítima de um acidente. Para a Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, foi assassinado.

    Acredito na boa fé de ambas as comissões, o que me leva a crer que as conclusões opostas se deveram à dificuldade de se apurar os fatos depois de tantos anos decorridos (Juscelino morreu em agosto de 1976, há 38 anos).

    O acidente é a versão mais anticlimática. Mais sedutora era a hipótese de um conjunto de crimes que teriam vitimado os três líderes civis que, àquela altura, se uniam contra a ditadura: João Goulart morreu em dezembro de 76, apenas quatro meses depois de JK, enquanto Carlos Lacerda morreu em maio de 1977.

    Ou seja, em nove meses, desapareceram os principais nomes políticos e não-revolucionários da oposição ao regime.

    Tentador, por isso, concluir que foram todos vítimas de um complô sinistro. As diferentes conclusões sobre o caso JK só contribuirão para manter no ar a teoria conspiratória, mais fascinante que mortes naturais ou por acidente.

    É por isso que se torna ainda mais necessário que o Estado brasileiro copie decisão desta semana do novo governo italiano, que decidiu desclassificar todos os documentos relativos a uma série de atentados nos anos de chumbo, entre 1969 e 1984. Ou seja, são acontecimentos mais ou menos contemporâneos às mortes de Juscelino, Goulart e Lacerda.

    Quem não quer ou não gosta da verdade pode até argumentar que, na Itália, é mais fácil abrir os arquivos porque o terrorismo era de particulares (a extrema direita e a Máfia), enquanto no Brasil o próprio Estado praticou terrorismo.

    Na Itália, os documentos a serem liberados referem-se a oito grandes atentados, como a matança da estação ferroviária de Bolonha (tradicional feudo comunista), em que morreram 85 pessoas; e o massacre de Ustica, a derrubada, aparentemente por um míssil, de um avião comercial que fazia o trajeto Bolonha/Palermo, com 81 passageiros a bordo, ambos em 1980.

    Tanto no Brasil como na Itália, só a liberação dos arquivos permitiria chegar à verdade, que é sempre melhor do que versões, ainda mais quando são conflitantes.

    crossi@uol.com.br

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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