• Colunistas

    Saturday, 18-May-2024 14:17:06 -03
    Clóvis Rossi

    Saudades de Saddam Hussein

    17/06/2014 01h15

    Ditaduras são sempre nefandas, nefastas, odiosas, horrorosas ou qualquer outro qualificativo diabólico que ocorra ao leitor.

    Mas a carnificina em curso no Iraque obriga a reconhecer que elas afetam diretamente a sobrevivência física de um número menor de pessoas que situações de conflito agudo e prolongado pós-ditaduras.

    É por isso que dá para supor que uma parcela talvez importante dos iraquianos esteja sentindo saudades do ditador Saddam Hussein, deposto pelos EUA em 2003. A ditadura era um horror, mas ao menos servia para manter congelado o conflito sectário entre sunitas e xiitas, que se tornou aberto após a sua deposição e vira agora uma tragédia em que se sucedem "execuções sumárias e assassinatos extrajudiciais", como diz Navi Pillay, a comissária da ONU para Direitos Humanos.

    Convém reafirmar que não estou dizendo que ditaduras podem ser melhores do que qualquer outra situação. Não são.

    O problema é saber, primeiro, se há uma alternativa a elas em países em que há divisões étnico-religiosas como no Iraque. Para o meu gosto, a democracia seria uma alternativa –e foi com ela como suposta bandeira que o governo George Walker Bush decretou a invasão do Iraque há 11 anos.

    Houve, então, um erro de origem: Washington dispensou a única legitimidade disponível no mercado (a aprovação da ONU) e se lançou a uma operação unilateral, com apoio de uns poucos aliados fiéis.

    Resultado segundo Nabil Khoury, pesquisador-sênior de Oriente Médio e Segurança Nacional no Conselho de Assuntos Globais de Chicago, em artigo para a "Cairo Review of Global Affairs":

    "Uma coisa é clara: as metas dos Estados Unidos no Iraque não foram alcançadas, e quaisquer conquistas obtidas antes da saída das tropas em 2011 estão sendo agora desfeitas. Da elevada meta de 2003 de construir uma nação, estão de fato de pé uma Constituição e um sistema parlamentar. Entretanto, a reconciliação nacional ficou para trás e pode estar agora na iminência de um colapso".

    Culpar apenas os EUA é fácil, mas pode não ser o mais correto.

    O que entra em questão no conflito iraquiano (e suas ramificações na Síria) é se países de maioria muçulmana são capazes de construir uma democracia ou se a única forma de conter os conflitos sectários é com a mão de ferro das ditaduras.

    Para quem acredita na primeira hipótese, é desanimador ver o desenlace, por ora, das diferentes manifestações da chamada Primavera Árabe, no Egito, na Síria, na Líbia.

    Resta de pé apenas a Tunísia, país não só menos relevante no xadrez árabe-muçulmano como com uma história de tolerância religiosa mais estabelecida, mesmo durante a ditadura de Ben Ali.

    O pior é que não se vê saída fácil para a crise iraquiana e já se fala no uso de drones, que tantas vítimas civis fizeram quando utilizados contra os talebans no Afeganistão, grupo que cortou os dedos de pelo menos 11 pessoas por estarem manchados da tinta que comprovava terem votado no domingo.

    É um horror contra outro horror.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024