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    Clóvis Rossi

    Quando os abutres ganham

    22/06/2014 03h42

    A reportagem da "Economist" sobre a nova (ou eterna?) crise da dívida argentina tem como ilustração um abutre devorando carniça.

    Soa como confirmação do nome que o governo argentino dá aos fundos que trabalham com os títulos não-reestruturados da dívida argentina: "fundos abutres".

    O que talvez a Argentina não esperasse, embora a presidente Cristina Kirchner diga o contrário, é o estrago que os abutres estão ameaçando fazer numa economia que já não vive exatamente o seu melhor momento.
    Tudo, como se sabe, pela decisão de um juiz norte-americano de obrigar o governo argentino a pagar aos abutres (os que compraram os papéis da dívida dos portadores que não aceitaram o desconto proposto na esteira do calote de 2001) juntamente com os juros devidos, no fim do mês, aos que, sim, aceitaram o reescalonamento.

    "Esta decisão da Justiça norte-americana significa demolir tudo o que a Argentina avançou na reestruturação de sua dívida", diz, por exemplo, Aldo Ferrer, economista desenvolvimentista.

    No ortodoxo "Financial Times", Vivianne Rodrigues vai pelo mesmo caminho: "Os planos da Argentina para fazer as pazes com os mercados financeiros internacionais estavam indo bastante bem. O país acatou, com demora, decisão de Centro Internacional de Acerto de Disputas sobre Investimento, um órgão de arbitragem; compensara uma empresa espanhola, a Repsol, pela expropriação das ações na YPF, firma estatal de petróleo; e, no mês passado, fez um acordo com o Clube de Paris, grupo informal de credores do governo [para pagar a dívida]".

    Pode-se aceitar, com certo desconforto, que o juiz não é obrigado a levar em conta o comportamento, bom ou mau, do governo litigante.

    Mas o poder que ganhou, no capitalismo contemporâneo, o que os argentinos chamam de "pátria financiera" desequilibra o jogo.

    Recapitulemos um pouquinho o contexto amplo do contencioso;

    1 - A Argentina não deu o calote por populismo, bolivarianismo ou qualquer outro ismo. Simplesmente não tinha dinheiro para pagar. Se empresas privadas podem reestruturar a sua dívida, em caso de necessidade, sob proteção judicial, por que não podem fazê-lo os governos?

    2 - Se os credores de 92% da dívida argentina, pouco mais ou menos, aceitaram o acordo pós-calote, é porque a proposta argentina não era escandalosa. Afinal, detentores de títulos públicos podem praticar muitos atos, mas nenhum deles é de benemerência.

    3 - Os credores cobram juros escandalosos de certos países exatamente como, digamos, habeas corpus preventivo, no caso de calote. Quando este ocorre, já recuperaram, via juros extorsivos, o que supostamente perderão com o "default".

    É uma lição que aprendi não nos manuais do PSTU ou do La Cámpora, o grupo de sustentação do kirchnerismo. Foi-me ensinada por um certo George Soros, capitalista que sabe ganhar dinheiro com as falhas do sistema que defende, mas cujos problemas reconhece.

    É uma pena que abutres não se preocupem com contextos. Só querem carniça.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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