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    Clóvis Rossi

    Cria corvos, e eles derrubam aviões

    19/07/2014 02h00

    Aplica-se à tragédia do avião malasiano um ditado espanhol ("cria cuervos que te sacarán los ojos", o que dispensa tradução). O presidente russo, Vladimir Putin, criou os corvos que são, provavelmente por erro, os responsáveis por matar quase 300 pessoas.

    O próprio Putin fez uma declaração que, devidamente lida, aponta para a responsabilidade dos corvos que ele criou nas regiões ucranianas em que há grande número de russos. "Sem dúvida, o governo do território no qual aconteceu [o desastre] carrega responsabilidade para esta assustadora tragédia".

    Ora, o território em que aconteceu o atentado está sob ocupação de uma milícia irregular, estimulada, armada e treinada pela Rússia de Putin.

    Nessa região, já houve ataques similares, contra um avião ucraniano de carga e um helicóptero também ucraniano, para não mencionar o fato de que os insurgentes pró-Rússia assumiram o ataque contra um jato militar, sempre ucraniano.

    Quando digo que foi provavelmente por um erro, levo em conta a pergunta clássica de contos policiais (quem ganha com o crime?). Ninguém, é óbvio. Logo, a lógica diz que deve ter sido erro.

    Mas, como escreve Max Boot do Council on Foreign Relations para a revista "Comentário", "se você entrega uma bazuca para um adolescente hiperativo e ele destrói a casa do vizinho, a pessoa que forneceu a arma é tão culpada quanto a que fez o disparo". Foi a Rússia de Putin que armou o cenário de conflito que, por sua vez, armou o braço que disparou o míssil.

    Como lembrou nesta sexta-feira (18) no "El País" José Ignacio Torreblanca, pesquisador do Conselho Europeu de Relações Exteriores, Putin violou os dez princípios contidos na chamada Ata de Helsinque de 1975, que estabeleceu as bases para a segurança e cooperação na Europa –ata assinada, entre outros 34 países, pela então União Soviética. Entre elas, a inviolabilidade das fronteiras, a integridade territorial e a não intervenção em assuntos internos de outros países.

    Escreve Torreblanca: "Em con­tras­te com es­tes prin­cípios, Mos­cou ane­xou a Cri­meia, mo­di­fi­can­do pela for­ça as fron­te­iras da Europa, ademais de apoiar com ar­mas e di­nhe­iro os se­ce­ssio­nis­tas pró-Rú­ssia no les­te da Ucrânia".

    O presidente Barack Obama diz que a Rússia forneceu aos separatistas não só armas mas também treinamento, o que derruba a hipótese de que os rebeldes ucranianos não teriam competência técnica para operar o sistema de mísseis terra-ar avançado, único que poderia ter sido empregado para derrubar o avião malasiano.

    Mesmo que se dê a improvável hipótese de que forças ucranianas derrubaram o avião, ainda assim quem criou o ambiente bélico propício ao erro foi a Rússia.

    O que acontece agora pode ser cedo para dizer, mas parece de sentido comum a avaliação de Mark Galeotti, do Centro para Assuntos Globais da New York University: "O Kremlin terá, com todas as suas bazófias e interpretações distorcidas, que retirar definitiva e abertamente o armamento e a proteção aos rebeldes".

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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