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    Clóvis Rossi

    Putin, parceiro inconveniente

    DE SÃO PAULO

    03/08/2014 02h00

    Se fosse editada na Rússia, esta Folha não poderia publicar o anúncio em que se diz a favor do casamento gay. A Rússia de Vladimir Putin é homofóbica. Mais que isso, é profundamente reacionária.

    Se alguém tem dúvida, que leia Marine Le Pen, o grande ícone da extrema direita francesa, para quem ela e Putin "defendem valores comuns". Ambos, segundo a xenófoba Le Pen, reivindicam "a herança cristã da civilização europeia".

    Confirma a Fundação São Basílio, do jovem oligarca Kons­tan­tin Ma­lo­feev, próximo do Krem­lin, que reuniu em Viena a nata dos nacionalistas e tradicionalistas europeus, para salvar a Europa do liberalismo, do ateísmo e do lobby gay.

    Quando fala de "herança cristã", Le Pen não olha para a frente, mas pensa em uma igreja arcaica, pois, para esse tipo de mentalidade, o papa Francisco, conservador moderado, é um perigoso esquerdista.

    E, quando esse pessoal fala de liberalismo, não está pensando em economia, mas em costumes. São contra o que chamam de "Eurosodoma", esse continente que veem em processo de dissolução na libertinagem.

    Para resumir, a Rússia de Putin é "um país que passou do comunismo a algo muito parecido ao fascismo em 25 anos", como escreveu recentemente para "El País" John Carlin, jornalista inglês que colabora esporadicamente com esta Folha.

    Somem-se ao reacionarismo o "bullying" sobre a Ucrânia e, mais recentemente, o caso do avião da Malaysia Airlines, sobre o qual já disse tudo no dia 19 passado. Tudo somado, há motivos suficientes para que o governo brasileiro não caia na tentação de aproximar-se demais de Putin.

    Explico a tentação: uma parte da esquerda, no Brasil e no mundo, tem a obtusa mentalidade de achar que o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Como parte da esquerda sempre foi antinorte-americana, quando surge alguém, como Putin, tentando criar embaraços para os EUA, passa a tratá-lo quase como herói.

    Tolice: pode-se perfeitamente criticar os Estados Unidos pelos pecados que comete e ao mesmo tempo criticar Putin pelos valores que vem defendendo, alinhado com quase toda a extrema direita europeia.

    Claro que é legítimo concordar com tais valores, situação em que, aí sim, alinhar-se com Putin está justificado. Mas não é o caso dos dois partidos que se revezam no governo brasileiro há 20 anos, ambos cuidadosamente liberais em matéria de costumes.

    Além disso, se há um desejo consensual de melhorar o ambiente internacional, é preciso entender que essa melhora passa por mudanças na Rússia.

    É difícil discordar de recente editorial do "Financial Times" em que afirma: "O que torna Putin tão belicoso no cenário mundial é, no fundo, a percepção de que a tentativa da Rússia pós-comunista de construir um Estado e uma sociedade modernas está entrando em areia movediça".

    Bem feitas as contas, o Brasil não precisa nem aderir às sanções à Rússia nem deixar-se usar, via Brics, por exemplo, para que Putin saia de seu isolamento.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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