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    Clóvis Rossi

    Não, não podemos

    21/10/2014 02h00

    Era uma vez um movimento de protesto que inundou as ruas com suas reivindicações. Brasil-2013? Sim, mas também Espanha nos anos de crise intensa iniciados em 2008.

    A coincidência termina aí. Infelizmente. No Brasil, as ruas foram esvaziadas. Os jovens que as ocupavam tornaram-se de novo invisíveis.

    Na Espanha, ainda que as ruas também tenham sido esvaziadas, o movimento dos indignados refluiu para assembleias em bairros ou cidades e, a partir delas, criou uma instância o mais parecida possível com um partido político.

    Chama-se Podemos, capturou 1,2 milhão de votos nas eleições europeias de maio passado e elegeu cinco eurodeputados.

    Resume Joaquín Prieto, jornalista de "El País": "Esta opção recolheu o descontentamento e despertou ilusões políticas em muitos que as haviam perdido".

    Neste domingo (19), o "Podemos" fez a sua assembleia para discutir os rumos e projetos políticos –um passo mais em direção à institucionalização.

    Enquanto isso, no Brasil, o descontentamento não encontra um canal de manifestação. Os números da eleição do dia 5 são eloquentes: a coligação que governa não passou de 30,5% dos votos possíveis (43 milhões em um eleitorado total de 142 milhões, arredondando).

    É óbvio que o segundo colocado, Aécio Neves, teve apoio ainda menor (24%). Significa dizer que o/a futuro/a presidente terá a hostilidade ou a indiferença original de 70% dos eleitores (se for Dilma) ou de 75%, se for Aécio.

    É óbvio que, seja qual for o eleito, poderá recuperar simpatias e infundir ilusões. Mas a campanha do segundo turno não foi um primeiro passo nessa direção.

    Ao contrário, está sendo a campanha do medo, em vez da campanha da esperança. Medo de que continue o modo PT de governar ou de que volte o modo PSDB.

    Não deixa de ser curioso: os dois partidos produziram em seus 20 anos de domínio do poder federal um país razoavelmente melhor do que o que encontraram.

    No entanto, ao adotarem, ambos os candidatos, a ideia de que é preciso mudar, parecem estar confessando que se esgotou o ciclo em que um e depois o outro se assentaram.

    O problema, para mudar, é que o constrangimento das contas públicas deixa pouca margem de manobra para inovações, pelo menos para inovações que custem dinheiro –e quase todas custam.

    Na Espanha, o Podemos lançou um tema que nem remotamente assoma no Brasil: o pagamento da dívida. Propõe não o calote, mas uma reestruturação ordenada, no pressuposto de que se trata de "uma questão de eficiência econômica e de necessidade".

    No Brasil, a rubrica que mais consome recursos públicos, depois da Previdência, é o pagamento dos juros da dívida, mas trata-se de um item tabu.

    Reestruturar pode ou não ser factível, mas interditar o debate sobre o tema, como o fazem os grandes partidos, só torna mais urgente a necessidade de um Podemos tapuia, que tente resgatar e içar a bandeira das ruas.

    Pena que ganhar R$ 0,20 (a menos nas tarifas de transporte) bastou para calar o grito de "podemos".

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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