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    Clóvis Rossi

    Vota a última flor da Primavera

    24/10/2014 17h45

    Responsável pela primeira floração da chamada "Primavera Árabe", a Tunísia faz neste domingo (26), três anos depois, uma vital eleição legislativa como a única flor remanescente das revoltas contra as ditaduras.

    Não importa tanto quem vai fazer a maioria das 217 cadeiras da Assembleia de Representantes do Povo, o Parlamento unicameral; se o partido islamista moderado Ennahda ("Renascimento") ou se o seu principal rival, o laico Nidaa Tounes ("Chamamento à Tunísia").

    Importa mais saber se a Tunísia continuará sobrevivendo como o único país plenamente democrático entre os 22 integrantes da Liga Árabe.

    Importa igualmente saber se o país pode ser juntar ao pequeno clube formado por Turquia e Indonésia em que populações majoritariamente muçulmanas vivem em democracia.

    Por fim, importa saber se os laicos aceitam conviver com um sistema político em que um partido islamista é majoritário. O Ennahda ganhou a primeira eleição democrática da Tunísia, em 2011, realizada na esteira da queda do ditador Zine Ben Ali.

    De lá para cá, o Ennahd passou em todos os testes de moderação e adaptação à democracia.

    Primeiro, como maioria, foi o principal responsável pela elaboração de uma Constituição que Monica Marks (da Brookings Institution) define como "a primeira Constituição livremente criada por uma assembleia representativa e democraticamente eleita em todo o mundo árabe".

    Segundo, apesar de sua legitimidade eleitoral, entregou o poder no início deste ano a um governo de tecnocratas apartidários, para evitar a repetição do que acontecera no Egito.

    Lá, o governo de um movimento aparentado com o Ennahd, a Irmandade Muçulmana, foi deposto por um golpe militar e o país voltou ao inverno da ditadura, depois de ter sido um dos polos da Primavera Árabe.

    O mais recente passo dos islamistas na direção de métodos ocidentais foi a contratação da empresa de relações públicas norte-americana Burson-Marsteller para trabalhar a imagem do partido durante a campanha eleitoral.

    Não é precisamente o que se espera de um partido islamista, mesmo moderado.

    Mas é necessário, porque o Ennhad vem perdendo apoios desde a sua vitória de 2011: de 2012 para 2014, a percepção favorável do grupo caiu de 65% para 31%, segundo pesquisa do renomado Pew Research Center (EUA).

    O declínio no prestígio dos islamistas veio acompanhado de idêntico desamor pela democracia, sempre segundo o Pew: dos 63% que diziam, em 2012, que a democracia é preferível a qualquer outro regime, agora (2014), apenas 48% mantêm essa opinião.

    A maioria (50%) ou não se importa com a forma de regime ou acha que, às vezes, um regime autoritário é melhor.

    Esse dado ajuda a entender por que o adversário do Ennhad, Nidaa Tounes, se tornou o partido preferido do eleitorado, segundo pesquisas.

    É uma coligação ampla que vai de líderes sindicais, esquerdistas, independentes e ex-membros da ditadura Ben Ali.

    É liderado por Béji Caid Essebsi, que foi primeiro-ministro interino após a queda do ditador, depois de ter participado da ditadura.

    Por isso, há o temor, entre analistas internacionais, de que uma vitória do Nidaa Tounes abra o caminho para a volta de um regime autoritário, que ilegalize os islamistas.

    Se já não fossem poucos os desafios para manter a democracia em uma região pontilhada por ditaduras, de um lado, e pelo radicalismo de grupos islamistas como o Estado Islâmico, a Tunísia enfrenta dificuldades econômicas conjunturais e a pobreza endêmica de parte importante de sua população.

    A economia cresceu apenas 2,3% em 2013, e a previsão para este ano é de crescimento parecido, nível muito abaixo do nível que a ditadura obtinha.

    O nível de desemprego, no primeiro trimestre de 2014, subiu para 15,2%, quando era de 13% antes da Primavera.

    Nessas circunstâncias, não é simples manter o fervor pela democracia, ainda mais quando se considera que meio milhão de tunisianos (quase 5% da população) vive com menos de 1 dinar por dia (menos de R$ 0,68 ao dia).

    Se a democracia conseguir não apenas se manter mas atacar esses problemas conjunturais e/ou crônicos, a Tunísia emitirá "um poderoso sinal de que reforma e pluralismo político não estão condenados a fracassar no mundo árabe", escreve Anthony Dworkin, pesquisador-sênior do Conselho Europeu de Relações Externas.

    Não é pouco, pois, o que está em jogo na eleição.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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