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    Clóvis Rossi

    O diabinho que habita a alma

    27/11/2014 02h00

    O que sempre me fascinou nos EUA é a mobilidade social que oferece (ou oferecia, porque a crise derrubou-a) e, por extensão, a diversidade étnica de sua população.

    Surpreendeu-me, por exemplo, travar conhecimento com um afegão, o primeiro que encontrei na vida, exatamente nos Estados Unidos.

    Era o taxista que me levou do aeroporto ao hotel em Denver.

    Estamos falando de 1997, antes, portanto, da invasão norte-americana ao Afeganistão. O taxista, que fugia do Taleban, falou muito bem da acolhida que tivera.

    Não deve ser o único imigrante feliz, a julgar pela quantidade fenomenal de estrangeiros que procuram fazer a América.

    Já esqueci o número exato, mas são mais de cem os idiomas falados no serviço telefônico de emergência de Los Angeles –evidência óbvia do número e diversidade de estrangeiros que procuram a cidade.

    Por tudo isso, fica ainda mais chocante a permanência do racismo, como demonstrado pelos incidentes dos últimos dias.

    Depois que os norte-americanos elegeram e reelegeram um negro à Presidência, era de supor que a desconfiança recíproca entre negros e brancos fosse coisa do passado.

    Engano, como escreve Michael Wines no "New York Times": "Uma nação com um presidente afro-americano e uma classe média negra significativa, ainda que em dificuldades, permanece profundamente dividida a respeito do sistema judicial, tal como estava décadas atrás".

    Os números mostram os motivos da divisão: os negros são 13% da população total, mas formam 40% da população carcerária; 3% de todos os homens negros estavam presos no fim de 2013, quando a taxa entre brancos era de apenas 0,5%.

    Em 2011, 1 de cada 15 afro-americanos tinha o pai preso; entre brancos, a proporção era de 1 para 111.

    É inevitável que parcela importante de brancos veja um negro e pense logo num bandido, assim como um negro olha para um policial branco e vê um racista arbitrário.

    Não é uma afirmação empírica: Wines cita pesquisa Huffington Post-YouGov desta semana em que 62% dos afro-americanos dizem que o policial (branco) Darren Wilson errou ao atirar no negro Michael Brown, opinião que apenas 22% dos brancos compartilhavam.

    Note-se que até um líder negro destacado, como o reverendo Jesse Jackson, esconde, no fundo d'alma, um demônio racista, conforme recordou nesta quarta-feira (26) Marc Bassets em "El País".

    Frase de Jackson: "Nada me dói tanto a esta altura da vida como ouvir passos atrás de mim, começar a pensar que me vão roubar e, então, olhar para trás e respirar aliviado ao ver que é alguém branco".

    Foi esse sentimento desumano que plasmou toda uma legislação segregacionista durante séculos.

    O fato de ela ter sido derrubada aos poucos não bastou para matar todos os demônios racistas que habitam os seres humanos.

    Será preciso toda uma revolução cultural e mental, por meio de uma ativa educação à convivência, para que um negro possa sentir-se tão à vontade nos EUA como um afegão.

    Atenção, isso vale também para o Brasil.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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