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    Clóvis Rossi

    Memórias da máfia argentina

    29/01/2015 02h19

    Impressiona, mas não surpreende, a quantidade de vezes em que a palavra "máfia" ou derivados aparece no noticiário argentino, desde a morte do promotor Alberto Nisman.

    Mais ainda desde que o jornalista que primeiro tuitou o caso, Damián Patcher, refugiou-se em Israel, com medo de também ser morto.

    Faz tempo que se sabe o comportamento mafioso de parte dos serviços de inteligência do Estado, em especial a antiga Side (Secretaria de Inteligência do Estado), rebatizada para SI (Secretaria de Inteligência) e que, só agora, Cristina Kirchner promete fechar, para abrir uma nova agência.

    Já em 2004, Gustavo Béliz, então ministro da Justiça (governo Néstor Kirchner), dizia que a Side era "um Estado paralelo, uma polícia secreta sem nenhum controle".

    Apontava o capo do esquema. É o mesmo António Stiusso, vulgo "Jaime", que agora aparece no noticiário como o responsável pelas informações que o promotor Nisman usou para acusar a presidente de pretender desvincular os funcionários iranianos suspeitos de preparar o atentado na sede de uma entidade judaica, a Amia.

    "É um senhor que todo mundo teme" e que "participou de todos os governos". Todos são, portanto, coniventes com o estilo mafioso dos serviços de inteligência (a antiga Side é apenas um deles).

    Mas a origem dessa máfia está na ditadura do período 1976/83. A partir do instante em que a cúpula militar liberou geral para que a "tigrada" –como são chamados os operativos– matasse e roubasse em nome da defesa do regime, abriu as portas que eles o fizessem também em benefício próprio.

    Eu tenho, talvez, as melhores condições de entender tanto o medo que levou o jornalista Patcher a fugir como o ambiente em que morreu Nisman. Quando era correspondente da Folha em Buenos Aires (1981/83), fui vítima de várias operações de intimidação, inclusive, como Patcher, seguido na rua. Dá mesmo vontade de fugir. Para me tirar do sufoco, a Folha antecipou uma viagem à América Central, já programada, e eu acabei de fato saindo temporariamente do país.

    Aí veio a Guerra das Malvinas, e os serviços de inteligência tiveram mais com que se preocupar.

    Invasão de residência? Foram duas e uma terceira tentativa, esta frustrada. Como sei que foram os serviços repressivos? Porque levaram notas de US$ 100 e US$ 50, que estavam numa gaveta, e deixaram as de US$ 20 e US$ 10, na mesma gaveta. Alguém conhece ladrão comum que aja dessa forma?

    Na terceira e frustrada tentativa, chamamos a polícia. Minha mulher apontou onde o rapaz que tentava abrir o trinquinho de segurança do apartamento apoiara a mão, sugerindo que tirassem impressões digitais. O policial disse que madeira, como a do batente, não deixa impressão digital. Então, tá.

    Nas duas bem sucedidas tentativas, não deixaram o menor rastro de arrombamento, tal como ocorreu no apartamento de Nisman.

    É saudável, pois, que Cristina Kirchner queira mudar o jogo, mas duvido que o consiga. O esquema é disseminado demais, e ela conviveu com ele tempo demais.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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