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    Clóvis Rossi

    O ajuste pode ser diferente

    22/03/2015 02h00

    Um certo país da Europa acaba de anunciar seu Orçamento, com medidas que vão na direção oposta às definidas pela presidente Dilma Rousseff (ou pelo ministro Joaquim Levy, vai-se saber).

    Uma delas é o aumento do Imposto de Renda para o 1% mais rico, de 25% para 27%. Outra é o aumento de impostos aos bancos, com o que espera arrecadar o equivalente a R$ 25,7 bilhões. Justificativa do ministro do Tesouro desse país: "Os bancos tiveram nossa ajuda durante a crise; agora devem apoiar o país enquanto se recupera".

    Simples e justo, não?

    Qual é o exótico país que adota medidas que deixariam o ministro Levy de cabelo em pé? Seria a Grécia, que acaba de cometer a ousadia de eleger um governo de esquerda?

    Não, não é a Grécia. Trata-se do Reino Unido, governado desde 2010 pelo Partido Conservador de David Cameron, um dos grandes campeões da austeridade e herdeiro remoto de uma certa Margaret Thatcher, ícone do neoliberalismo que o PT e Dilma amavam odiar (antes de ganharem a reeleição e se verem obrigados a amar Levy e sua ortodoxia).

    Não se trata de sugerir que o Brasil deva incluir mecanicamente no seu pacote de ajuste as medidas citadas. As situações são diferentes, as economias são diferentes, a capacidade de "enforcement" do Reino Unido é imensamente superior à do Brasil e por aí vai.

    Mas trata-se, sim, de cobrar que as autoridades brasileiras tentem, uma vez na vida, pensar também fora da caixa. Demandar mais de quem mais tem é uma regra de sentido comum, que não tem nada de ortodoxa ou heterodoxa.

    É evidente que, para uma fatia da população, está sobrando dinheiro, a ponto de serem brasileiros os que mais fazem consultas sobre imóveis em Miami, conforme relatório da Associação de Imobiliárias da cidade.

    Bancos também sabidamente pagam pouco imposto no Brasil, aproveitando-se de uma legislação tributária no mínimo tortuosa.

    Que essas pessoas e esse setor deem uma contribuição mais suculenta para o saneamento das contas públicas seria apenas uma questão de justiça social.

    O problema é que a crise brasileira não é só política, econômica e ética. É também de inteligência. Os anões que sobraram na vida pública, no governo e na oposição, claramente carecem de projeto de país.

    O caso do Reino Unido ilustra também que a mera austeridade – que, diga-se, tornou-se necessária pelo descalabro anterior– não é a panaceia universal.

    O país adotou com thatcheriano entusiasmo o "austerícidio" que é marca registrada das políticas europeias contemporâneas.

    Até deu certo, mas levou seis anos para que o Reino Unido recuperasse o tamanho da economia que tinha no primeiro trimestre de 2008, às vésperas da grande crise.

    Ainda assim, comenta Martin Wolf, principal colunista do "Financial Times", "a economia é agora cerca de um sexto menor do que seria se as tendências pré-crise tivessem continuado", o que significa "um colapso no crescimento da produtividade e, em consequência, nível de vida estagnado". O Brasil aguenta um tranco assim?

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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