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    Clóvis Rossi

    O ditador que deu certo

    24/03/2015 02h00

    Ditaduras são abomináveis, qualquer que seja seu signo ideológico. Mas, feita essa declaração de princípios, sou obrigado a aceitar que pelo menos uma ditadura está sendo absolvida de seu pecado original pelo sucesso na construção do país.

    Refiro-me à louvação universal que se seguiu à morte no domingo (22) de Lee Kuan Yew, criador de Cingapura, primeiro-ministro durante 31 anos e, depois, o poder nas sombras, até se retirar em 2011, deixando o filho no poder, característica de muitas ditaduras.

    Dele disse o presidente Barack Obama, líder de um modelo democrático que Yew considerava decadente: "Foi um verdadeiro gigante da história, que será lembrado por gerações como pai da moderna Cingapura e um dos grandes estrategistas de assuntos asiáticos".

    Acrescenta o líder da maior democracia do mundo, o premiê indiano Narendra Modi: "Foi um leão entre líderes". No site da "Foreign Policy", o colunista Parag Khanna vai ao exagero: "Yew pode descansar em paz sabendo que o país que liderou é a mais bem-sucedida nação pós-colonial do mundo".

    O extraordinário sucesso econômico de Cingapura é, obviamente, a causa que leva a essa catarata de louvações. Mas não é a única razão: "Há também algo menos tangível, o senso de prosperidade e suave eficiência de tal forma que parece que, por algum milagre, a ordem dos Alpes e a limpeza da Suíça se conjugaram nos trópicos", escreve um dos melhores colunista do planeta, Roger Cohen ("The New York Times").

    De fato fascina. Na primeira e única vez que estive em Cingapura, em 1996, a revista de bordo da Singapore Airlines informava que o passageiro levava no máximo 15 minutos entre o avião encostar no portão e ele deixar o aeroporto.

    Foi assim mesmo.

    Menos mal que, em meio ao coro, apareça William J. Dobson, também da "Foreign Policy", para escrever que Yew "mantinha seu projeto político sob estrito controle, sufocando a liberdade de expressão, amordaçando seus críticos e esmagando a oposição política antes que ela pudesse criar raízes". É o receituário clássico de toda ditadura, com a diferença de que todas acabam fracassando economicamente, por mais duradouras que pareçam.

    A exceção é a China, que parece ter se inspirado em Yew e sua ditadura capitalista bem-sucedida. Tão bem-sucedida que o êxito da ilha-Estado não se mede pela explosão da renda per capita em seus pouco mais de 60 anos de autonomia, o que seria normal em um país tão pequeno. O assombroso é que, partindo de um nível apenas algo maior que o chinês, nos anos 60, a renda per capita de Cingapura é hoje mais de cinco vezes superior à da "milagrosa" China.

    Como adepto incondicional da democracia, tenho que acreditar que Cingapura obteria os mesmos resultados sem os controles ditatoriais que Yew adotou. Mas a realidade também me obriga a dizer que as democracias ocidentais têm que provar que podem ser eficientes em favor das maiorias, sob pena de lustrar as credenciais de China e Cingapura, neste que pinta ser o século da Ásia.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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