• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 04:59:59 -03
    Clóvis Rossi

    Rio, mas pode chamar de Haiti

    04/05/2015 02h00

    O velho sábio que habitava esta Folha costumava dizer que vivera o suficiente para ver tudo acontecer e o seu contrário também.

    Achava que eu também havia chegado a esse estágio em que nada me surpreenderia. Até sábado, 2 de maio de 2015, quando o título "Preferimos o Haiti" apareceu no caderno "Cotidiano" e foi como um soco no estômago.

    Como é possível que o Exército brasileiro considere mais fácil uma missão pacificadora em um Estado falido, como o é o Haiti, do que no coração do próprio Brasil, na sua cidade mais emblemática e mais bonita?

    O general Fernando Azevedo e Silva, chefe do Comando Militar do Leste, foi explícito: "Nossas ações ali [no complexo da Maré] foram limitadas, tornando a ação muito mais difícil do que em outras ocasiões".

    O general expõe uma das limitações: diferentemente do que aconteceu durante a ocupação no Alemão ou durante os dez anos no Haiti, o Exército não pode realizar buscas em residências nem ocupar imóveis que comprovadamente pertenciam a criminosos. Fica claro, portanto, que o Estado brasileiro é tolerante em relação ao crime organizado (além de incompetente em relação ao crime desorganizado).

    Tolerância, de resto, igualmente explicitada na negociação que a Prefeitura de São Paulo levou a cabo com os traficantes antes de uma desastrada operação na cracolândia, na semana passada.

    Segundo o general Azevedo e Silva, a missão na Maré é mais complicada do que no Haiti porque, na favela carioca, "há três facções com disputas internas".

    Quer dizer o seguinte: as autoridades são capazes de identificar as gangues em operação na Maré, o que implica saber quem são os seus líderes, mas não são capazes de prendê-los e/ou de controlar as suas atividades criminosas.

    Ou, posto de outra forma, as autoridades, no Rio ou em São Paulo ou em outras partes do país, preferem negociar com o tráfico, como ocorreu no caso da cracolândia e em episódios anteriores no Rio de Janeiro, a reprimi-lo.

    Parêntesis: sou dos que acham que a guerra às drogas, da forma como está sendo conduzida no mundo, é um fracasso. Mas, enquanto não houver outro arcabouço institucional para lidar com o assunto, guerra é guerra, não negociação com criminosos.

    O fato concreto é que nunca neste país, antes como agora, se deu à questão da segurança pública o tratamento prioritário que merece.

    Permitiu-se que o Estado perdesse o monopólio no uso das armas. Permitiu-se que o crime, organizado ou não, assumisse territórios em que impõe a lei, a sua lei.

    Que isso aconteça no Haiti é lamentável, mas dá pelo menos para entender. O país foi vítima de uma ditadura, a do "Papa Doc" (1957-71), continuada por seu filho, o "Baby Doc", durante as quais se deu a um grupo paramilitar, os Tonton Macoute, poder de vida e morte sobre os haitianos.

    Desorganiza qualquer país por um período longo. No Brasil se está tolerando uma nova versão dos Macoute, que é o narcotráfico, mais fortemente armado. É natural que até os militares prefiram o Haiti.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024