Rafael Correa, presidente do Equador, contou recentemente que o papa Francisco costuma brincar com a suposta ou real empáfia de seus compatriotas argentinos e chegou a brincar:
"As pessoas pensavam que, por ser argentino, eu me chamaria Jesus 2º em vez de Francisco".
É uma boa piada, mas, talvez, Francisco devesse mesmo ter os poderes de Jesus para enfrentar os problemas da Igreja Católica nos tempos que correm.
Nesta quarta-feira (10), o papa até deu uma demonstração de que quer imitar a expulsão dos vendilhões do templo, como fez Jesus, ao ordenar a criação de uma corte para julgar bispos acusados de acobertar padres que cometeram abusos contra crianças.
É um primeiro passo para, de um lado, expulsar os encobridores do templo e, de outro, desencorajar a repetição dos abusos.
O sentido comum manda dizer que, se não puderem contar com a proteção de seus superiores, os religiosos pensarão duas vezes antes de cometer esse tipo de crime hediondo.
Resta ver se a Congregação para a Doutrina da Fé (a antiga Inquisição), que abrigará o novo tribunal, terá de fato disposição e coragem para punir os bispos.
A dúvida me parece pertinente quando se sabe que a Cúria Romana tem resistências notórias ao arejamento da igreja.
Até mesmo o secretário de Estado, Pietro Parolin, o segundo homem na hierarquia do Vaticano, indicado por Francisco, manifesta opinião que colide com a do papa na questão, por exemplo, da aceitação dos homossexuais. Quando a Irlanda aprovou em plebiscito o casamento gay, Parolin considerou o resultado nada menos que "uma derrota para a humanidade".
Já seria uma agressão suficiente ao bom senso se não fosse, também, um desafio ao próprio Francisco.
Não dá para esquecer que o papa, na viagem de volta do Rio ao Vaticano, dissera "quem sou eu para julgar" [os homossexuais]?
Se ele pensa assim, como é que seu segundo se anima a fazer o julgamento - e, ainda por cima, de uma forma tão tremendista?
Agora mesmo, está sobre a mesa do papa um dossiê que dirá muito se Francisco se aproxima da ousadia de Jesus ou se vai se conformar com os cânones vaticanos como são hoje.
Trata-se de conceder o agrément a Laurent Stefanini, designado pelo presidente francês François Hollande para o posto de embaixador no Vaticano.
Stefanini é gay assumido, católico fervoroso e já serviu na embaixada francesa na Santa Sé como segundo na hierarquia.
Sua designação foi feita em janeiro, e seu antecessor já deixou a embaixada em março.
Mas até agora, o papa, a quem cabe aceitar a designação, não se manifestou.
É óbvio que Parolin, cujo cargo equivale a ministro do Exterior do Vaticano, tem que ser ouvido a respeito da nomeação.
Como ele tem opinião forte sobre casamento entre homossexuais, não pode gostar do fato de a França ter legalizado esse tipo de união.
Mas o que está em jogo não é uma bênção do Vaticano ao casamento gay e, sim, apenas a aceitação de um diplomata gay, aliás solteiro.
É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.