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    Clóvis Rossi

    Memórias da falta de memória

    15/06/2015 12h31

    Se e quando o Brasil jogar no Estádio Nacional de Santiago do Chile pela Copa América, espero que as televisões brasileiras mostrem um pequeno pedaço vazio da arquibancada e, em especial, a faixa ali estendida, que diz: "Um povo sem memória é um país sem futuro".

    Vale para o Chile, vale para o Brasil, dois países que têm uma imensa dificuldade em acertar as contas com o negro passado de ditaduras militares.

    Tanto é assim que o Chile tardou 24 anos para transformar um pequeno pedaço do Estádio Nacional em memorial para as vítimas do campo de concentração ali instalado pelo golpe militar de 1973.

    A ditadura acabou em 1990, mas o memorial só foi inaugurado em 2014, na boca de saída número 8.

    Por que exatamente ali, se todo o estádio, inclusive vestiários e dependências administrativas, era um campo de concentração?

    Porque era o pedacinho que melhor permitia que os presos vissem seus familiares amontoados às portas do campo e que fossem vistos por eles.

    Por falar em familiares, o drama deles é a parte menos conhecida do inferno em que se transformou o Chile após o golpe, inferno de que o Estádio Nacional foi uma espécie de concentrado.

    Tocou-me acompanhar pais de brasileiros que haviam se exilado no Chile, fugindo do golpe no Brasil, e deixaram de dar notícias depois do novo golpe, agora no país de abrigo.

    Fui com eles às portas do estádio, experiência suficiente para sentir que os militares não apenas torturavam os presos, mas martirizavam também seus parentes.

    Um martírio que passava, antes de tudo, pela falta de informação sobre o paradeiro dos que haviam sido presos logo depois da derrubada do governo constitucional de Salvador Allende.

    Por isso é que a saída 8 era importante: permitia que alguns presos dessem sinal de vida a seus parentes, cobrindo a lacuna de informações oficiais.

    Mesmo os que recebiam tal sinal continuavam a ser torturados pelos rumores incessantes que chegavam às pessoas concentradas às portas do campo de futebol, transformado em centro de torturas.

    Que havia torturas terríveis, já era sabido àquela altura. Que havia mortes também. Mas havia, além disso, rumores sobre, por exemplo, um surto de sarna ou sobre a falta de alimentação para os presos.

    Ou a falta de cuidados médicos que causou a morte de um brasileiro, o ex-capitão da Polícia Militar de São Paulo Vânio José de Matos, militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), vítima de grave infecção intestinal, certamente causada pelas condições da prisão.

    Militares brasileiros, aliás, participaram do esquema de tortura. E o noticiário que dava conta dessa participação foi censurado em todos os meus textos.

    Até hoje, o Brasil não prestou contas nem desses episódios externos nem dos internos.

    Não é necessariamente uma cobrança pela revogação da anistia. Mas vale para o Brasil uma frase para "El País" do escritor e jornalista mexicano Alberto Lati sobre o memorial chileno: "O Chile precisa encontrar uma forma de ir adiante sem que isso signifique perdoar ou esquecer".

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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