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    Clóvis Rossi

    Tiranos, tremei

    23/07/2015 02h00

    A África, continente em que democracia e respeito aos direitos humanos são bens escassos, está dando um grande exemplo ao mundo ao julgar Hissène Habré.

    Trata-se do ditador do Chade no período 1982/1990, acusado, com abundantes depoimentos e provas, da morte de cerca de 40 mil pessoas e de torturas em 200 mil.

    Já seria todo um acontecimento o simples fato de um ditador ser levado a julgamento, quando a norma é vê-los livres, leves e soltos por aí, no máximo em exílio dourado.

    Mas o caso Habré ganha importância mundial por se tratar do primeiro julgamento de uma personalidade de um país em outra nação –no caso, o Senegal.

    O processo só se tornou possível por um acordo entre o Senegal e a União Africana, o conglomerado dos 54 países da África, para a criação de um tribunal especial, as CAE (Câmaras Africanas Especiais).

    É uma espécie de versão africana do Tribunal Penal Internacional, o de Haia –aliás, o motivo por trás da criação das CAE.

    Há uma desconfiança generalizada na África de que o TPI é uma maquinação do homem branco para julgar os líderes negros e apenas eles (não é bem assim, mas impressões colam).

    "A União Africana considera que o Tribunal Penal Internacional faz justiça seletiva e persegue apenas os africanos", diz à "Slate" Marcel Mendy, porta-voz das CAE.

    Por isso mesmo, acrescenta Mendy, "a outra face deste processo é que a África deve provar que ela é capaz de julgar seus próprios filhos para que outros não o façam em seu lugar".

    Já seria louvável em si, mas há um aspecto talvez ainda mais relevante, que é o exemplo dado para outros ditadores, os ainda em funções e os que já deixaram seus postos, mas permanecem impunes (como o próprio Habré ficou durante 25 anos).

    Diz, por exemplo, Reed Brody, o conselheiro da Human Rights Watch que trabalhou nos últimos 16 anos com as vítimas de Habré:

    "Este caso é uma advertência aos despótas de todos os lugares de que, se se envolverem em atrocidades, nunca estarão fora do alcance de suas vítimas."

    Reforça Maïté Hostetter, responsável pelo Programa África da Freedom House, uma instituição norte-americana que trabalha pela democracia:

    "O julgamento manda uma clara mensagem aos líderes autoritários de que o abuso de poder não será tolerado".

    É uma triste ironia que a mensagem citada por Hostetter possa servir justamente para o sucessor de Habré, Idriss Déby, que o depôs em 1990 e está no cargo desde então.

    O atual presidente necessariamente sabia das atrocidades praticadas pelo seu antecessor, por ter sido primeiro chefe das Forças Armadas do Norte [do Chade] e depois das Forças Armadas Nacionais Chadianas –obviamente fundamentais na repressão selvagem que agora leva Habré ao banco dos réus.

    Déby, aliás, admitiu, em entrevista de 1984 ao jornal "Le Figaro", que o regime aplicava "uma justiça expedita e exemplar".

    É de esperar que o julgamento de Habré seja igualmente "exemplar", mas no bom sentido, para todos os ditadores –inclusive os da América Latina, em geral impunes.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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