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    Clóvis Rossi

    Turquia ataca o inimigo errado

    30/07/2015 02h00

    A mais direta análise sobre os ataques da Turquia ao EI (Estado Islâmico) e, principalmente, às forças curdas no Iraque é de Cengiz Candar, colunista do jornal "Radikal" e do "site" Al-Monitor.

    É assim: "Se o governo do AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento, no poder há 12 anos) se engaja em ataques diários contra alvos do PKK [Partido dos Trabalhadores do Curdistão, considerado terrorista pela Turquia], ao mesmo tempo em que anuncia que tais ataques continuarão, é preciso ser estúpido para não perceber que o objetivo é criminalizar o PKK e marginalizar o HDP, forçando-o a cair abaixo da barreira eleitoral".

    Um pouco de memória: HDP é o Partido Democrático do Povo, também curdo, mas legal. Obteve 13% dos votos na eleição de junho, superando a barreira dos 10% e, com isso, tirando do AKP, do presidente Recep Tayyip Erdogan, a maioria absoluta a que se habituara.

    Sem maioria, o AKP negocia uma coligação há quase dois meses, sem sucesso, Se ela não for formada logo, haverá nova eleição.

    Nelas é que a demonização dos curdos em geral e de seu braço político-eleitoral, o HDP, pode levá-lo a não superar a barreira dos 10% dos votos e, portanto, a ficar de fora do Parlamento –o que, por sua vez, facilitaria a recuperação da maioria absoluta pelo partido de Recep Erdogan.

    Essa visão míope e eleitoralista pode até dar certo internamente, mas, em matéria de enfrentamento ao Estado Islâmico –o verdadeiro inimigo da Turquia, dos curdos, dos EUA e da Europa– tende a ser um tiro no pé.

    Analisa, por exemplo, Steven Cook, pesquisador-sênior de Estudos de Oriente Médio do Council on Foreign Relations, ao falar do apoio que os Estados Unidos deram aos ataques turcos:

    "Washington ficou na estranha posição de dar essencialmente sinal verde para [a Turquia] combater alguns dos mais efetivos lutadores naquele conflito [contra o Estado Islâmico] –os curdos, tanto os do PKK como aqueles de seus primos sírios, as Unidades de Proteção do Povo".

    Reforça Dan de Luce, correspondente para Segurança Nacional da revista "Foreign Policy":

    "Washington pode estar autorizando Ancara a atacar as únicas forças no terreno que se mostraram efetivas contra o Estado Islâmico."

    Além do objetivo eleitoral já citado, deve estar nos cálculos de Erdogan que a efetividade dos curdos iraquianos contra os radicais islâmicos tende a aguçar o apetite dos curdos turcos por mais autonomia ou até independência.

    Diz, por exemplo, Tozun Bahcheli, cientista político da Western University (Canadá):

    "O governo turco vê os curdos politicamente ativos como uma ameaça ainda maior que o EI, porque põem em risco a integridade territorial turca, ao contrário do EI, com toda a sua horrível ideologia e métodos horrendos".

    Os curdos são um grupo étnico sem território próprio e estão (ou estavam até a semana passada) em negociações para um cessar-fogo com o governo turco.

    Os ataques recentes ameaçam claramente o processo de paz em andamento há três anos.

    Só não ameaçam de fato o verdadeiro inimigo, o Estado Islâmico.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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