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    Clóvis Rossi

    Notícias do grande cemitério aquático

    28/08/2015 11h51

    Arrisco-me a dizer que o horror de mais um naufrágio, com 200 mortos ou mais no Mediterrâneo —transformado em um gigantesco cemitério aquático, não supera dramas individuais.

    Os mortos no Mediterrâneo ou, por falar nisso, os do caminhão abandonado com cadáveres na estrada que liga a Áustria à Hungria, não têm nomes nem rostos.

    Desumanizados nos países de origem, o que os obriga a fugir, morrem desumanizados nos países que deveriam ser de chegada ou no mar que os conduz a um paraíso inatingível.

    A morte que mais me chocou, no entanto, tem pelo menos a idade e alguma descrição, pobre é verdade, mas é algo mais do que o comum.

    Falo de uma menina síria de 11 anos que morreu de coma diabético, a bordo de uma dessas embarcações precárias em que as máfias jogam suas vítimas. Os traficantes (líbios) roubaram seus medicamentos e o cadáver foi abandonado no mar, ante as lágrimas do pai impotente.

    É possível que outras histórias infames como essa ocorram diariamente, no mar ou em terra, mas não dá tempo de recolhê-las e contá-las. Morrem no fundo do mar ou na traseira de um caminhão.

    Em seguida a cada naufrágio, sucedem-se as críticas à ação (ou inação) dos governos europeus, incapazes de estabelecer uma política comum para enfrentar o problema.

    Em vez de acatar a romântica proposta de Hélio Schwartzman (abrir totalmente todas as fronteiras), caminha-se para o exato inverso: fechá-las todas.

    Escreve, por exemplo, Bernd Riegert, para a Deutsche Welle: "Quando a pressão [migratória] aumentar no futuro, pode bem acontecer que os Estados tenham segundos pensamentos sobre sua soberania nas fronteiras e queiram proteger suas próprias pequenas fortalezas".

    Se e quando isso acontecer, ruirá uma das conquistas da unificação europeia, que é exatamente a liberdade de trânsito entre os países que fazem parte do chamado "Espaço Schengen" (aboliram os controles fronteiriços internos todos os 27 países da União Europeia, menos Irlanda e Reino Unido, mais três países que não são membros da UE, Islândia, Noruega e Suíça).

    Criar fortalezas não vai adiantar, a menos que se destinem à segurança das fronteiras recursos financeiros e humanos que são mais necessários em outras áreas.

    É tão precário quanto a outra solução, sempre aventada nessas horas: combater mais duramente os traficantes de pessoas.

    É justo que se faça, mas, lembra a revista "The Economist", eles existem apenas porque há demanda - e a inflexível lei da oferta e da procura fará com que outros surjam se os atuais forem presos.

    O correto, mas, admito, igualmente utópico como a proposta do Hélio Schwartzman, é lançar uma espécie de mega Plano Marshall capaz de estabilizar a economia e a sociedade dos países africanos para que eles possam segurar sua gente.

    Seria preciso uma generosidade e uma solidariedade que não estão disponíveis no mercado de ideias do Ocidente (ou, a bem da verdade, de qualquer outra civilização).

    E ainda que se criasse restaria o problema dos conflitos em países como Síria, que empurra uma massa inacreditável de gente para a busca de sobrevivência.

    Para os conflitos no Oriente Médio, não há solução à vista. Logo, outros pais chorarão impotentes a morte de seus filhos no antigamente chamado Mare Nostrum, o Mediterrâneo, hoje o mar de ninguém. E nem poderão enterrá-los.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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