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    Clóvis Rossi

    Quem matou Aylan Kurdi?

    04/09/2015 07h00

    Aylan Kurdi é a criança síria de 3 anos que morreu na tentativa de sua família de chegar à Europa. A foto de seu cadáver na praia "chocou a Europa", segundo o "Monde", que deveria ter sido mais preciso: chocou o mundo.

    "É a foto do fracasso da Europa, do mundo desenvolvido", decretou Elena Valenciano, deputada socialista do Parlamento Europeu.

    De acordo, Elena, mas vamos qualificar um pouco a afirmação. Primeiro, o fracasso da Europa vem de sua incapacidade de adotar uma política comum para lidar com o maior fluxo de migrantes desde a Segunda Guerra Mundial (1939-45).

    Até aí, é fácil. O passo seguinte é mais complicado: como estabelecer uma política comum —e necessariamente generosa— em tempos de escassez?

    Mesmo um partidário sem restrições da generosidade, caso de Guillaume Duval, redator-chefe de "Alternatives Economiques", admite: "Os receios suscitados por esse afluxo não são injustificados em sociedades minadas pelo desemprego de massa nas quais os sistemas sociais já estão submetidos à tensões importantes".

    Em português claro, prevalece, em situação de dificuldades, o clássico "meu pirão primeiro".

    Por isso, há resistências no mundo desenvolvido em aceitar mais bocas para alimentar e mais braços para buscar os já poucos postos de trabalho.

    Eu acho abominável, mas não adianta desconhecer a realidade.

    A Alemanha, a grande Meca dos que buscam refúgio, é um exemplo da convivência entre o lado luminoso da reação à crise e o lado mais negro.

    A estação de trens de Munique, ponto de chegada de milhares de refugiados, foi inundada de doações para que voluntários, também em grande quantidade, as distribuíssem aos recém-chegados.

    Comovente prova de que nem todo o mundo desenvolvido fracassou, ao contrário do que pretende Elena Valenciano.

    Mas, simultaneamente, o Ministério do Interior informava que, de janeiro a agosto, ocorreram 336 agre­ssões a abrigos para refugiados, o dobro das verificadas em 2014 e seis vezes mais do que em 2013.

    Está claro que, mesmo que a Europa se tornasse um exemplo irretocável de solidariedade e de ação conjunta, ainda assim o drama tenderia a continuar.

    Duval ("Alternatives Economiques") sugere um Plano Marshall, similar ao que os Estados Unidos implantaram na Europa do pós-guerra e que permitiu que o continente saísse dos escombros para se tornar um formidável polo econômico e o mais acabado exemplo de Estados de bem-estar social.

    Reforça, em "El País", Sa­mi Naïr, pro­fe­ssor de Ciên­cias Políticas da Uni­ver­si­dad In­ter­na­cio­nal da Andaluzia: "Se as políticas de contenção [da migração] desabam hoje é principalmente porque levaram à acumulação de uma enorme demanda migratória insatisfeita, sem dar-se conta de que a única maneira de limitá-la era o aumento significativo da ajuda ao desenvolvimento nos países não-comunitários, a fim de estabilizar 'in situ' as populações".

    Bingo. O outro lado do fracasso do mundo desenvolvido é a sua incapacidade ou impotência para promover tal estabilização.

    O caso da Síria é, talvez, o mais exemplar: já há 4 milhões de refugiados, o equivalente a 17% de sua população. No Brasil, seria como se 3 de cada 4 habitantes do Estado de São Paulo fugissem para algum outro país.

    O êxodo vai prosseguir, como se pode deduzir do relatório que Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da comissão da ONU que analisa a crise síria, vai apresentar à Comissão de Direitos Humanos.

    Depois de lamentar que o mundo funcione apenas como testemunha da guerra, prevê: "Sem pesados esforços para trazer as partes à mesa de negociação, as tendências correntes sugerem que o conflito sírio —e as mortes e destruição que ele acarreta— continuarão pelo futuro previsível".

    Além da Síria, há três outros pontos de conflito que geram o grosso dos refugiados: o Afeganistão e sua eterna guerra civil, os ciganos que escapam do Kosovo para fugir da discriminação e os eritreus em fuga de uma ditadura comparável à da Coreia do Norte.

    O fracasso do mundo desenvolvido, apontado por Elena Valenciano e por outros especialistas, é justamente não conseguir estabilizar essas situações, forçando famílias como a do menininho Aylan a tentar a fuga, mesmo sabendo dos riscos de morrer na tentativa.

    Quem o matou, portanto, foi a barbárie em curso na Síria, onde, sempre segundo o relatório de Paulo Sérgio Pinheiro, "os civis estão sofrendo o inimaginável".

    O mundo desenvolvido, no entanto, é cúmplice por estar se revelando incapaz de conter a barbárie, dominado pelo que o papa Francisco definiu como "globalização da indiferença".

    A foto de Aylan chacoalhou a indiferença, mas logo ela volta a predominar, até a próxima fotografia sinistra.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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