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    Clóvis Rossi

    O preconceito é pegajoso

    23/11/2015 02h00

    Não tenho nenhum tipo de preconceito, pode acreditar. Mas sei, por experiência própria, que esse sentimento mesquinho se esconde em algum recanto escuro da alma e só não emerge quando se está atento e se olha para pretos e brancos, judeus e muçulmanos, cristãos e ateus, até políticos, como seres humanos iguais a mim.

    Minha experiência de distração se deu no aeroporto de Tel Aviv já faz uns dez anos. A Folha me mandou para Israel para cobrir a reocupação de territórios palestinos pelas forças israelenses, como represália e prevenção de atentados cometidos em Israel.

    Eram assustadoramente frequentes e aconteciam em lugares, restaurantes por exemplo, como os que ensanguentaram Paris no dia 13 de novembro.

    Na fila de controle de passaportes no aeroporto Ben Gurion, calhou de ficar exatamente ao lado de uma família de árabes, com roupas típicas a reforçar sua identidade.

    O anão preconceituoso que habita cada um de nós se manifestou então. Tão discretamente quanto possível, procurei outra fila, até mais concorrida, mas o mais longe possível da família árabe.

    Peço desculpas, mas meu cérebro encharcado de notícias me lembrou que, naquele mesmo aeroporto (que nem se chamava ainda Ben Gurion), houvera em 1972 um atentado terrorista que provocara a morte de 36 pessoas.

    Nem processei o fato de que o ataque fora obra não de árabes mas de um grupo terrorista japonês, o chamado "Exército Vermelho".

    Entendo, por isso, embora condene, que surja agora, na esteira da cadeia de atentados destes últimos tempos, um mundo de pessoas que olhe para os muçulmanos com suspeição.

    O preconceito acaba provocando um sentimento, justificado, de vitimização entre os muçulmanos.

    O jornal espanhol "El País" registra, por exemplo, a queixa dos habitantes de Beirute pela falta de cuidados com as vítimas do atentado na capital libanesa, ocorrido na véspera dos ataques em Paris.

    Diz o jornal: "Depois dos atentados de Paris, de imediato, o Facebook oferecia um aplicativo para que seus usuários marcassem a casinha de 'estou bem'. Os libaneses só podiam recorrer à tradicional chamada telefônica para localizar seus entes queridos".

    A esse descaso, some-se a rotulação das vítimas de Beirute, conforme já apontei no site da Folha na sexta-feira, dia 20:

    "Os mortos de Beirute não foram tratados como seres humanos, mas como militantes do libanês Hizbullah, como tal desprovidos de humanidade, porque o grupo é radical e considerado terrorista".

    Nesse cenário, é improvável que se corrija o desvio violento de muçulmanos, ainda mais quando se atribui à religião um caráter intrinsecamente violento.

    Abdellah Tourabi, editor da excelente revista marroquina "TelQuel", lembra que "o Alcorão, como todos os outros livros religiosos, contém passagens violentas e belicosas", mas que são expressão de sua época.

    Só o diálogo, não o choque de civilizações, será eventualmente capaz de afastar jovens muçulmanos de um universo que Tourabi diz, corretamente, ser "fantasmagórico e anacrônico".

    Estamos muito longe disso.

    crossi@uol.com.br

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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