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    Clóvis Rossi

    Memórias de uma casa cor-de-rosa

    09/12/2015 07h00

    Até entendo as razões pelas quais Cristina Kirchner não quer passar nesta quinta-feira, 10, a faixa e o bastão presidenciais para Mauricio Macri na Casa Rosada.

    No Congresso, o local preferido da presidente, Macri seria hostilizado por La Cámpora, o grupo de fanáticos do kirchnerismo, aguando um pouco a festa oposicionista.

    O fato de entender o motivo não quer dizer que o aceite. Ao contrário, é de uma mesquinharia indigna de qualquer político sério.

    Afinal, a Casa Rosada não só foi tradicionalmente o local das transmissões de posse (tradição só interrompida pela própria Cristina) como é o centro de tudo o que acontece, de bom e de ruim, na política argentina.

    Enrique Marcarian - 14.mai.2014/Reuters
    Protesto de sindicatos contra Cristina na praça de Maio no ano passado; ao fundo, a Casa Rosada
    Protesto de sindicatos contra Cristina na praça de Maio no ano passado; ao fundo, a Casa Rosada

    Foram tantas as posses presidenciais que acompanhei, sempre na Rosada, que até decorei o juramento de praxe.

    Cito-o de memória: "Juro por Dios, la Patria y los Santos Evangelios desempeñar con lealtad y patriotismo el cargo de presidente de la nación y observar y hacer observar en lo que de mi dependa la Constitución de la Nación Argentina. Si así no lo hiciere, que Dios y la Patria me lo demanden".

    Curiosidade: no seu juramento, Cristina acrescentou a "Dios y la Patria" um "él", em alusão a Néstor Kirchner, o marido morto.

    Argentinos têm um certo culto aos mortos. Às vezes assusta.

    Sempre que ouvia esse juramento, ficava imaginando quando Deus demandaria alguma coisa de algum presidente. Deve tê-lo feito inúmeras vezes, tal a quantidade de presidentes que passaram pelo famoso "sillón de Rivadavia", o assento presidencial.

    A pátria também demandou a partida de mais de um deles. Alejandro Agustín Lanusse, chefe da Junta Militar da penúltima ditadura, encerrada em 1973 (espero que a seguinte, a do período 1976/1983, tenha sido a última), foi cuspido em praça pública ao entregar o poder a Héctor Cámpora.

    Dois anos depois, já no desastroso governo de Isabelita Perón, os muros de Buenos Aires apareceram pichados com a frase: "Lanusse/ volvé/ te perdonamos" ("volvé" é a forma portenha para "vuelve", volte).

    Além de reverenciar os mortos, os argentinos cultivam também um humor cáustico e, em geral, delicioso.

    Em 2001, um "cacerolazo" expulsou da Casa Rosada mais um presidente, Fernando de la Rúa (medíocre ao extremo), mas pareceu pouco ao público. Gritaram "que se vayan todos" [os políticos].

    Quase funcionou: quatro presidentes, depois de De la Rúa, passaram pela Rosada, até que se iniciou o reinado dos Kirchner.

    POVO À DISTÂNCIA

    Pena que a Casa Rosada já não seja a mesma: agora, há grades isolando-a da plaza de Mayo, outro eixo da história argentina.

    Antes, passava-se pelo número 50 da calle Balcarce, o endereço oficial da casa de governo, roçando os tijolos. Podia-se até arriscar uma espiadinha para seu interior (aliás, precioso).

    Agora, o tal de povo é mantido a uma distância prudente, por mais populares que sejam ou se digam os governos de turno.

    A grade, em tese, só aumenta o isolamento em que costumam cair alguns governantes. O exemplo que vivi de perto foi o do general Leopoldo Fortunato Galtieri, então presidente (1982), que convocou as massas para um "pronunciamiento" dos balcões da Casa Rosada.

    Anunciou a rendição nas Malvinas, a louca guerra que os generais haviam desencadeado poucos meses antes. Não consigo imaginar o que ele esperava da massa ao convocá-la para anúncio tão fúnebre.

    Provocou um tremendo tumulto, aos gritos de "Galtieri/ borracho/ mataste a los muchachos" (o general tinha fama de bêbado, e não foram poucos os jovens argentinos mortos nas Malvinas).

    Felizmente, os tempos são outros. Tão outros que o sociólogo Juan Gabriel Tokatlian me jura que Macri é o primeiro conservador que triunfa democraticamente na Argentina desde a eleição de Hipólito Yrigoyen em 1916, pela União Cívica Radical.

    Explica Tokatlian: "O conservadorismo, como partido/projeto/movimento, só pôde se impor (e temporariamente) pela força, mediante golpes de Estado. Ou teve expressão concreta em termos de programa econômico com Carlos Menem (1989/99) e De la Rúa, embora suas respectivas eleições se tenham dado com etiquetas político-eleitorais dos partidos tradicionais, o peronismo e o radicalismo".

    Macri é, portanto, uma grande novidade nos 117 anos de história da casa cor de rosa de Balcarce 50.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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