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    Clóvis Rossi

    Sorria, é a morte

    07/01/2016 02h00

    Corinne Rey, a Coco, a chargista que foi obrigada a abrir a porta da Redação do "Charlie Hebdo" para os que assassinariam colegas seus, deu entrevista para um consórcio de grandes jornais europeus, da qual resgato uma frase:

    "O clima é tenso política e socialmente, mas isso não nos deve impedir de rirmos de tudo, inclusive da morte."

    É o que o "Charlie Hebdo" está fazendo, no número que marca o primeiro aniversário dos atentados ocorridos em 7 de janeiro de 2015.

    Sua capa mostra um barbudo correndo, fuzil ao ombro, sangue na roupa, com o título: "Um ano depois, o assassino continua em fuga".

    Não é apenas o assassino que continua solto.

    O fanatismo está em ascensão, a intolerância só faz crescer e, por extensão, fica reforçada a visão de Gerard Biard, redator-chefe do "Charlie", em entrevista a "El País": "Pa­ra mim, tra­ta-se somente de re­cha­çar uma ideo­lo­gia to­ta­li­tá­ria ba­sea­da em dog­mas re­li­gio­sos".

    O Vaticano vestiu a carapuça que, a rigor, nem lhe era destinada, ao condenar a capa do jornal satírico, considerando-a desrespeitosa aos fiéis de todas as religiões.

    Não acho que seja.

    Para começar, são minoria, em todas as religiões, os que usam um fuzil para defender suas ideias ou, pior ainda, para matar os que não acreditam nelas.

    Para continuar, desenhos não matam.

    O que o "Charlie Hebdo" faz é praticar uma saudável iconoclastia ou, nas palavras de Biard, "rechaçar uma ideologia totalitária [qualquer que ela seja, acrescento] baseada em dogmas religiosos".

    Está se vendo, no mundo, que a mistura de religião, qualquer que ela seja, com política em geral dá confusão.

    Mas a iconoclastia do Charlie não se volta apenas contra dogmas religiosos.

    O totalitarismo, a intolerância, são seus alvos prioritários, uma artilharia cada vez mais necessária.

    Quem duvida que leia Jean-Marie Guéhenno, presidente do International Crisis Group, que, como o nome indica, estuda situações de crise no mundo todo.

    Escreveu ele: "Nos 20 anos após o fim da Guerra Fria, conflitos mortais estiveram em declínio. Menos guerras estavam matando menos pessoas no mundo todo. Cinco anos atrás, no entanto, essa tendência positiva se reverteu, e cada ano desde então tem visto mais conflitos, mais vítimas e mais pessoas deslocadas [de suas casas]".

    Completa Guéhenno: "É improvável que 2016 traga melhorias em relação a 2015. É a guerra –não a paz– que tem seu momento".

    É evidente que nem todas as guerras envolvem algum deus.

    Ao contrário: em nome dele é que se dão disputas por poder ou terras ou riquezas.

    Mas é igualmente evidente que, onde se invocam preceitos religiosos, a situação só se torna mais terrível e, a paz, mais distante.

    Estou pensando, por exemplo, na Síria. O que começou como luta contra o totalitarismo se transformou (também) numa guerra por procuração entre xiitas (Irã, o Hizbullah, o clã Assad, que é alauita, vertente xiita) e sunitas (Arábia Saudita, Turquia, partes da oposição síria).

    Por tudo isso, um ano depois, eu continuo sendo "Charlie".

    crossi@uol.com.br

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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