• Colunistas

    Tuesday, 30-Apr-2024 19:59:37 -03
    Clóvis Rossi

    Glamorizando o crime

    17/01/2016 11h06

    O ator-em-traje-de-jornalista Sean Penn fez a pergunta certa na reportagem que acompanha sua entrevista com Joaquín "El Chapo" Guzmán, que se orgulha de ser -e de fato é- o maior traficante de drogas do mundo.

    "Não somos, o público americano, cúmplices daquilo que demonizamos?", perguntou o ator, referindo-se ao público que é o maior consumidor de drogas.

    Em seguida, sugere que o consumidor norte-americano é de fato cúmplice de cada morte e de cada ato de corrupção "que resulte de nosso insaciável apetite por narcóticos ilícitos".

    De acordo, Sean. Pena que você não tenha se incluído entre os cúmplices, ao glamorizar o crime, por meio da entrevista que fez com o "capo" então em fuga.

    Lamenta, por exemplo, Pascal Beltrán del Rio, diretor-editorial do jornal "Excelsior":

    "Lembro os tempos em que os personagens de Hollywood buscavam pôr-se ao lado de pessoas de estatura moral ou de gente perseguida por seus ideais.

    Hoje, o modelo que fascina, e não só Hollywood, é quem enriquece violando a lei, zombando da autoridade e matando quem se oponha a seus fins".

    De fato, não é apenas o pessoal de Hollywood que se sente fascinado pelos criminosos, como constata outro jornalista mexicano, o também acadêmico Ricardo Raphael, em coluna para "El Universal":

    "Já faz tempo que Joaquín Guzmán Loera se tornou em um mito principal de nossa cultura. A épica de seu personagem inspirou muitos a investir a vida em negócios criminosos".

    A glamorização do narcotráfico acaba deixando de lado o tremendo custo, em vidas e recursos financeiros, que vem com ele.

    Vidas: "Das 120 mil pessoas mortas na década passada, metade veio das guerras que o cartel de Sinaloa abriu", disse a "The New York Times" o jornalista mexicano Héctor de Mauleón, referindo-se ao cartel liderado por "El Chapo".

    Recursos: segundo o Informe Global da Paz-2015, elaborado pelo Instituto para a Economia e a Paz, a guerra contra o narcotráfico custa ao México US$ 221 bilhões anuais (R$ 894 bilhões), calcula outro jornalista, Eduardo Ruiz Healy ("El Imparcial" de Sinaloa).

    Não dê de ombros, imaginando que se trata de um problema estritamente mexicano. No Brasil, também é uma ferida importante, igualmente glamorizada.

    Basta ver a babação de ovo em cima de presidentes de escolas de samba, após cada premiação dos desfiles anuais, omitindo o fato de que parte deles é sabidamente envolvida com o jogo do bicho.

    E, atenção, há muito tempo que o jogo do bicho deixou de ser uma contravenção relativamente menor para se tornar parte do vasto negócio do crime organizado.

    Nesse cenário, é natural que tais negócios, no Brasil e no resto do mundo, progridam mais e mais.

    É inútil supor que a nova prisão de "El Chapo" significará uma redução do tráfico e do consumo, o que ele próprio admitiu a Penn que não acontecerá.

    A evolução dos negócios e sua consequente glamorização só provam que a guerra ao tráfico está sendo perdida. Não é hora de reavaliar as estratégias?

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024