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    Clóvis Rossi

    O ocaso dos caudilhos

    24/02/2016 02h01

    Uma pichação flagrada pelo "Financial Times" em um muro de El Alto, a cidade-bastião "evista" e indígena colada a La Paz, traz em apenas três palavras a explicação para o resultado do plebiscito de domingo (21):
    "Gracias, pero no".

    Sim, boa parte dos bolivianos agradece a Evo Morales a verdadeira revolução social que implementou em seus dez anos de poder, mas uma fatia ligeiramente maior acha que dez anos bastam.

    Xinhua-23.fev.15/Jose Lirauze/ABI
    Evo Morales discursa durante cerimônia em La Paz
    Evo Morales discursa durante cerimônia em La Paz

    Essa fatia negou ao presidente a possibilidade de disputar um quarto mandato, uma demonstração de que o caudilhismo— historicamente arraigado na América Latina— está chegando ao ocaso.

    Grife na frase anterior a palavra "ocaso" porque é precipitado dar por morto o caudilhismo, mesmo depois das derrotas do chavismo, do kirchnerismo e, agora, de Evo Moraes.

    Foram, em todos os casos, derrotas por margens estreitas, o que é natural: por muito que a região se tenha modernizado continua forte o apelo de homens supostamente providenciais.

    Vale para todos esses países —e também para o Brasil —a avaliação de Ludwig Valverde, presidente da Associação de Cientistas Políticos de La Paz, para o "Global Post":

    "[O resultado do plebiscito] diz respeito a como o Estado opera. Os bolivianos querem um Estado transparente e que responda a eles e não querem um presidente que permaneça indefinidamente no poder".

    A permanência prolongada no poder dá mais espaço para a corrupção, outra praga que assola a América Latina e se torna mais evidente e gritante em tempos de liberdade.

    O caudilhismo, além disso, traz em seu DNA o germe de seu fracasso: caudilhos impedem que à sua sombra cresça um sucessor natural.

    O exemplo do Brasil e de Lula é definitivo: em 1997, líderes do PT (Lula, José Dirceu, Tarso Genro, Marco Aurélio Garcia) aproveitaram reunião da esquerda latino-americana no Chile para articular a candidatura de Tarso ao pleito presidencial do ano seguinte.

    Se convencesse as bases do partido, substituiria Lula, o eterno candidato petista. Mas Lula não lhe deu o menor espaço para tanto e, em pouco tempo, era de novo o candidato - mesmo para uma derrota certa para Fernando Henrique Cardoso, ainda montado no prestígio do Plano Real.

    Na falta de um líder natural, os caudilhos usam o "dedazo" para apontar o sucesso. E fracassam.

    Chávez inventou Nicolás Maduro apenas para transformá-lo no maior fracasso administrativo do mundo contemporâneo, fora países em guerra ou ditaduras.

    Cristina Kirchner teve que engolir a candidatura de Daniel Scioli, que não tinha o aval do "kirchnerismo" —e perdeu.

    Lula inventou Dilma Rousseff e testemunha agora o seu fracasso.

    Evo Morales ainda tem três anos de gestão para construir um sucessor. A ver o que e como fará.

    De todo modo, esses caudilhos deixam uma marca indelével: uma mudança social relevante, quase uma revolução em termos de redução da pobreza.

    O tempo dirá se o crepúsculo dos caudilhos acabará por desfazer essa herança bendita, por ação dos sucessores ou pelo simples peso da crise.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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