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    Clóvis Rossi

    Cuba, Obama e Chanel

    20/03/2016 02h00

    É mera coincidência, mas não deixa de ser significativo, que Barack Obama se torne a partir deste domingo, 20, o primeiro presidente norte-americano a visitar Cuba desde Calvin Coolidge (1923-29).

    Explico: atribui-se a Coolidge uma frase emblemática: "O negócio da América são os negócios".

    Pois é exatamente por meio dos negócios e do que o jargão diplomático chama de contatos "people-to-people" que Obama espera trazer Cuba para o "American way of life", ou seja, para o livre mercado e, em algum ponto futuro, para a democracia.

    É claro que o presidente terá de fazer o que os argentinos chamam de "saludo a la bandera": pregar publicamente tanto a liberalização da política quanto da economia cubanas e o respeito aos direitos humanos.

    Trata-se de, um lado, da convicção íntima de um liberal como Obama, mas também de atender às pressões internas: a comunidade cubana nos EUA já se rendeu ao degelo com a ilha, mas ainda se divide ao meio quando se trata de aprovar a viagem do presidente a Cuba.

    Yamil Lage - 18.mar.2016/AFP
    TOPSHOT - Tourists walk next to a poster of Cuban President Raul Castro and US president Barack Obama in Havana, on March 18, 2016. US president Barack Obama touches down in Havana on Sunday to cap a long-unimaginable rapprochement with Cuba and burnish a presidential legacy dulled by Middle East quagmires and partisan sniping. As Air Force One rolls to a stop, Obama will become the first sitting US president to visit Cuba since Calvin Coolidge arrived on a battleship in 1928, before the discovery of penicillin or invention of the ballpoint pen. AFP PHOTO/YAMIL LAGE / AFP PHOTO / YAMIL LAGE ORG XMIT: HAV17
    Cartaz no centro de Havana com as imagens de Raúl Castro e Barack Obama

    Se ele omitisse democracia e direitos humanos de sua agenda na visita seria uma ofensa imperdoável.

    Mas, pragmático como é, Obama já deixou claro, em entrevista recente, como pretende conquistar os cubanos: "Estaremos bem melhor se a mentalidade, a cultura e as atitudes do povo e dos negócios americanos estiverem presentes para os cubanos verem e interagirem no dia a dia", afirmou ao Yahoo News.

    Mais claro e explícito, impossível.

    Minha experiência pessoal com Cuba sugere que ele tem razão: estive pela primeira vez em Cuba em 1977, ou seja, 18 anos depois da vitória da revolução.

    Espantou-me o fato de que jovens cubanos, nascidos depois que os hábitos norte-americanos já haviam sido desterrados, ainda pediam chicletes de bola, insistentemente, confundindo-me com um "gringo" (menos mal que não pediam esmolas).

    Suspeito até que, mais significativa do que a viagem de Obama, por mais histórica que seja, venha a ser um evento posterior: dia 3 de maio, informa "El País", a grife Cha­nel apre­sen­ta­rá sua coleção "Cruzeiro 2016/17" de mo­da feminina no Pa­seo del Pra­do, a ajardinada e emblemática avenida que, em parte, passa por Habana Vieja.

    Entre prosaicos chicletes de bola e a sofisticação da Chanel há todo um abismo que mostra como evoluiu ao longo dos anos, mesmo sem Obama, a atração que o nada discreto charme da burguesia exerce sobre os cubanos.

    Já há de resto uma incipiente burguesia, que emprega cerca de 30% da população, entre empresários por conta própria, cooperativistas e agricultores do setor privado.

    A visita de Obama seguramente servirá de estímulo para desenvolver esse setor privado. Mas é ilusório pensar que o avanço do capitalismo será acompanhado de liberalização política.

    Basta saber que, segundo a Comissão Cubana para Direitos Humanos e Reconciliação Nacional, somente nos dois primeiros meses do ano, 2.500 pessoas sofreram detenções arbitrárias.

    Pena que esse não seja o negócio da América.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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