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    Clóvis Rossi

    Olhe, você está sendo roubado

    07/04/2016 02h00

    Claro que seria saudável se o exemplo do primeiro-ministro islandês Sigmundur David Gunnlaugsson fosse seguido por Eduardo Cunha. Sobre ambos, pesa um fato praticamente idêntico: contas em paraíso fiscal.

    O fato de Cunha agarrar-se ao cargo enquanto o premiê islandês renuncia é toda uma enciclopédia sobre a diferença de costumes políticos entre um país civilizado e um primitivo. Mas a renúncia de Gunnlaugsson nem é o mais importante aspecto dos "Panama Papers". O relevante é a exposição de um esquema relativamente antigo pelo qual os ultrarricos fogem do pagamento de impostos pela via de contas em paraísos fiscais.

    É uma montanha de dinheiro roubado dos contribuintes, como o demonstra um estudo do economista Gabriel Zucman citado pelo "Financial Times": haveria cerca de US$ 7,6 trilhões estocados em paraísos fiscais. Equivalem a 8% da riqueza mundial. Ou a 4,6 "brasis" escondidos do fisco em contas opacas.

    É impossível discordar do escritor Fredrik DeBoer, quando ele escreve o seguinte para o sítio da Foreign Policy: "Você e eu pagamos nossos impostos; os ricos encontram meios de evitá-los. Para alguns, ler sobre os 'Panama Papers' será como ser avisado pelos pais que Papai Noel não é real: é apenas a confirmação final de uma suspeita há muito mantida, a de que o jogo é fraudado e, a menos que você seja parte do 1% global [os hiperricos], não é fraudado para ajudá-lo".

    Essa fraude é terrivelmente ecumênica, como constata José Ignacio Torreblanca, pesquisador do European Council on Foreign Relations, em sua coluna para "El País":

    "Queixamo-nos de que o capitalismo gera desigualdade. Mas na parte de baixo [da pirâmide social]. Porque na parte de cima, muito de cima, parece gerar uma identidade de interesses capaz de unir as máfias dedicadas às drogas com os políticos islandeses e a Coreia do Norte com o pai de David Cameron".

    Desnecessário acrescentar que todos os citados aparecem nos "Panama Papers".

    Uma comunidade de interesses que inclui ainda, entre centenas de outros, parentes de oito membros ou ex-membros do Politburo do Partido Comunista Chinês e o grupo Hizbullah, listado como terrorista pelo Ocidente, mas que usa os paraísos fiscais ocidentais para driblar as sanções.

    O incrível nessa triste história do capitalismo global é que os paraísos fiscais são legais, ainda que muitas contas neles abertas não o sejam. Trata-se, portanto, de um roubo legalizado, em grande medida azeitado por entidades (o sistema financeiro) que são essenciais ao capitalismo.

    O "Figaro" relata, em sua edição desta quarta, que os cinco grandes bancos franceses tiram um terço de seu lucro de paraísos fiscais, nos quais suas operações são 60% mais lucrativas do que no resto do mundo.

    Alguma surpresa com o fato de que a "Economist" lembre que os "Panama Papers" aguçam "um sentimento contemporâneo, o de uma fundamental desconexão entre as elites globais e o resto, para o qual impostos são tão certos quanto a morte"?

    crossi@uol.com.br

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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