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    Clóvis Rossi

    Até que Saddam não era tão ruim

    07/07/2016 02h00

    David Furst - 5.nov.2006/AFP
    O ditador iraquiano Saddam Hussein reage ao ouvir sua condenação à morte, em novembro de 2006
    O ditador iraquiano Saddam Hussein reage ao ouvir sua condenação à morte, em novembro de 2006

    Diz a lenda que o chamado "chanceler de ferro" Otto Von Bismarck (1815-1898) cunhou a seguinte frase: "Leis são como salsichas; é melhor não saber como são feitas."

    O relatório de "sir" John Chilcot sobre o papel do Reino Unido na invasão do Iraque indica também que é melhor não saber como são tomadas decisões absolutamente relevantes —a de ir à guerra, por exemplo.

    Foi um erro do começo ao fim, demonstra o relatório. Um erro que acaba sendo o resgate implícito do papel da ONU, essa instituição tão criticada por sua inação.

    É razoável supor que, se a decisão de invadir o Iraque tivesse sido submetida à ONU —como manda, de resto, a legalidade internacional—, talvez pudessem ter sido evitados ao menos alguns dos erros apontados pelo relatório Chilcot.

    Talvez se pudesse até ter evitado a guerra, que, como se viu depois, criou mais problemas do que resolveu, ao livrar o mundo de um tirano abjeto como Saddam Hussein.

    O maior dos erros, se o olhar se voltar para o presente e o futuro, não para o passado, é o fato de que os planos do pós-guerra no Iraque foram "completamente inadequados".

    Uma das consequências inexoráveis: o pós-guerra reabilitou a ditadura, como aponta Ben Wederman, da emissora americana CNN:

    "Muitos amigos iraquianos se lembram dos velhos bons tempos de Saddam Hussein, quando atentados terroristas eram raros, (...) quando se podia viajar a praticamente todas as partes em Bagdá ou no Iraque, sem medo de ser alvejado ou sequestrado ou decapitado. Não havia liberdade de expressão, não havia democracia. A regra com que governava Saddam era o medo, mas ao menos havia uma regra. Quando você experimenta a anarquia, a ditadura não parece tão ruim".

    Pois é, uma guerra mal planejada, mal executada e que não pensa no pós-guerra, apenas troca uma ditadura pela anarquia.

    Ou pior: a anarquia abre espaço para uma versão ainda mais terrível do terrorismo do que a velha Al Qaeda, que se pretendia eliminar com a invasão do Iraque.

    Diz o relatório Chilcot: "Entre 2003 e 2009, eventos no Iraque minaram a estabilidade regional, inclusive por abrir espaço para a Al Qaeda operar e por deixar inseguras as fronteiras através das quais seus membros podem se mover."

    Completa o colunista David Gardner, do jornal "Financial Times":

    "Um resultado do Iraque é o Estado Islâmico, uma repetição ainda mais selvagem da Al Qaeda, como vemos continuamente não somente em Raqqa e Mossul [tomadas pelo EI], mas de Dacca a Medina ou de Istambul a Bruxelas; há ainda carnificinas repetidas em Bagdá" [para relacionar apenas algumas das cidades atingidas mais recentemente por atentados reivindicados pelo Estado Islâmico ou atribuídos a ele].

    Se o EI é um legado da guerra, cria-se um problema permanente para o mundo, a julgar pelo que disse ao jornal "Times of Israel" Shadi Hamid (Brookings Institution):

    "O EI estabeleceu um padrão de ouro para grupos extremistas. Eles não só explodem coisas, eles também capturam território e, então, impõem seu modelo de governo".

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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