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    Clóvis Rossi

    Falta coração à democracia

    14/07/2016 02h00

    Da primeira mulher a ocupar o número 10 de Downing Street, depois de sua correligionária Margaret Thatcher, espera-se que, ao assumir, crave na agenda o credo da austeridade e do liberalismo.

    Não foi o que fez Theresa May, a nova premiê britânica. Ao contrário: propôs-se lutar contra "a injustiça que queima", uma característica dos tempos modernos, mesmo nas democracias mais avançadas e mais antigas.

    Niklas Halle'n/AFP
    Manifestantes favoráveis à saída britânica da UE pedem que Theresa May acelere processo
    Manifestantes favoráveis à saída britânica da UE pedem que Theresa May acelere processo

    É uma confirmação indireta, vinda de fonte inesperada, de que tem razão uma outra mulher, Michelle Bachelet, a presidente do Chile: "A democracia representativa por si só já não dá resposta aos anseios das pessoas de participarem da construção da sociedade" (entrevista recente a "El País").

    Não é opinião isolada: pesquisa do instituto Metroscopia publicada há um mês informa que 74% dos espanhóis não estão satisfeitos com o funcionamento da democracia.

    Bachelet estende sua observação sobre a desconfiança em relação à democracia ao "mundo empresarial e às instituições religiosas", para concluir: "Há um questionamento à elite".

    O voto dos britânicos para deixar a União Europeia explicitou esse questionamento: a maioria dos representantes das elites de diferentes setores pediu o voto pela permanência ""e perdeu.

    Constata, por exemplo, Jean Pisani-Ferry, comissário-geral de "France Stratégie", instituição de assessoria política de Paris: "Em toda parte, um número significativo de cidadãos tornou-se hostil aos 'cognoscenti" (os peritos, os especialistas, a elite, enfim). Acrescenta Pisani: "[Esses cidadãos] não querem que seu julgamento dependa de políticos, acadêmicos, jornalistas, organizações internacionais ou centros de pesquisa".

    Esse repúdio foi, aliás, claramente explicitado por Michael Gove, o ministro britânico que foi das vozes mais ativas na campanha pelo "não" à Europa: "As pessoas neste país já tiveram o suficiente da parte dos 'experts."

    Por mais que democracia signifique o governo do povo, o fato é que ela foi se transformando em território das elites, nas suas várias facetas, criando o ambiente para a injustiça que queima, como disse Theresa May.

    Aponta Ellie Mae O'Hagan, em coluna no "Guardian": "33% dos membros do Parlamento foram a escolas privadas e quase um quarto frequentou Oxbridge [fusão de Oxford com Cambridge, grifes de excelência]; 43% dos colunistas de jornal e 26% dos executivos da BBC foram educados em escolas privadas."

    Comparação essencial: apenas 7% dos britânicos frequentam escolas privadas, até porque, ao contrário do Brasil, o ensino público não é um desastre. Mas também no Reino Unido a escola privada é a preferida para a educação da elite.

    O grande problema quando se criticam a democracia e a sua elitização é que não se inventou até agora uma alternativa palatável. Fica, então, essa sensação de mal estar que caracteriza o mundo contemporâneo e é admitida por outra mulher-líder, Christine Lagarde, a diretora-gerente do FMI: "Gostaria que o FMI tivesse uma face humana."

    A democracia agradeceria.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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