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    Clóvis Rossi

    Na Colômbia, mercado ganhou a guerra, falta ganhar a paz

    26/08/2016 07h00

    O acordo de paz na Colômbia representa o fim do último resquício da Guerra Fria na América Latina. Significa também a rendição de um dos últimos combatentes contra o mercado.

    Basta lembrar as palavras com que Iván Márquez, um dos líderes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), iniciou as negociações em Havana, faz quatro anos:

    "Viemos des­mas­ca­rar esse assas­sino me­ta­fí­si­co que é o mercado, viemos denunciar o caráter criminoso do capital financeiro, viemos colocar o neoliberalismo no banco dos acusados como verdugo dos povos e fábrica de morte".

    Colprensa-24.ago.16/Xinhua
    O presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, anuncia em Bogotá o consenso com as Farc para o histórico acordo de paz que encerra o conflito civil na Colômbia
    O presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, anuncia em Bogotá o histórico acordo que encerra o conflito civil na Colômbia

    Quatro anos depois, as Farc deixam as armas sem que o mercado tenha sido derrotado ou o neoliberalismo tenha deixado de comandar a maioria das economias, na América Latina ou no mundo. E sem que que o capital financeiro tenha deixado de ser absolutamente (e absurdamente) hegemônico.

    Para a revista "The Economist", no número que está nas bancas, "o reconhecimento pelas Farc da ordem constitucional colombiana representa a morte de uma cepa de violência stalinista que infestou a América Latina por décadas".

    Estabelecidas essas premissas, cabe discutir que cepa esquerdista as Farc poderão apresentar ao eleitorado colombiano agora que, se tudo der certo com o acordo de paz (e torço para que dê), disputarão o poder com votos em vez de balas.

    É importante que o mercado e o neoliberalismo sejam de fato contestados, a partir de propostas consistentes que não seja, por exemplo, a fracassada alucinação do bolivarianismo na vizinha Venezuela.

    Não custa lembrar que a derrota do comunismo na Guerra Fria deixou o capitalismo com o campo livre para dar ao mercado todo o poder, já que fracassara o "todo o poder ao Estado" que caracterizava o socialismo real.

    A consequência foram duas, igualmente ruins: o descontrole absoluto que levou à crise de 2008/09, cujos efeitos são sentidos até hoje, e o crescimento da desigualdade em sociedades antes mais homogêneas.

    A necessidade de um vigilante do mercado, de resto, está presente no acordo de paz entre o governo e as Farc: o primeiro capítulo tratado é exatamente o que se poderia chamar de reforma agrária.

    Mais precisamente, de passar a tratar os camponeses de uma maneira mais digna.

    Diz o sítio "La Silla Vacía", preciosa publicação digital colombiana:

    "Um de cada três colombianos vive na Colômbia rural, e só por isso, já é mais pobre, menos educado e mais desnutrido que seus compatriotas urbanos, como mostrou o informe de Desenvolvimento Humano do Pnud, o programa da ONU para desenvolvimento, em 2011.

    Enquanto, em várias cidades, a pobreza extrema é de 7%, no campo chega a 29%. Mais de 60% da população rural em idade de trabalhar somente terminou os níveis básicos do primário e, como consequência, cerca da mesma proporção recebe um pagamento inferior ao salário mínimo".

    Nunca é demais lembrar que as Farc nasceram como guerrilha rural e que atacar o problema do campo não é uma concessão do governo, mas o reconhecimento de que se trata de condição necessária para evitar que se mantenham as condições que levaram ao início da guerra.

    O desafio posto às Farc se estende, a rigor, ao conjunto da esquerda latino-americana: como sair da condenação retórica ao neoliberalismo hegemônico para propostas capazes de funcionarem na prática e ganharem os votos que as balas (as de verdade e as retóricas) perderam.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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