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    Clóvis Rossi

    África começa a fugir da lei internacional

    21/10/2016 16h34

    Bas Czerwinski/ANP
    Ahmad al-Faqi al-Mahdi durante julgamento em que foi condenado por destruir locais históricos no Mali
    Ahmad al-Faqi al-Mahdi durante julgamento em que foi condenado por destruir locais históricos no Mali

    O anúncio do governo sul-africano de que vai abandonar a Corte Penal Internacional é um sério golpe ao ainda incipiente sistema global de justiça.

    A Corte Penal Internacional (CPI) entrou em vigor em 2002, como a primeira corte internacional destinada a julgar os piores crimes humanitários.

    Pena que os Estados Unidos não tenham aderido ao chamado Protocolo de Roma, que criou a CPI, o que impede que eventuais crimes praticados por seus agentes em operações espalhadas pelo planeta sejam levados a julgamento.

    Antes da África do Sul, o Burundi havia anunciado idêntica decisão, mas, primeiro, seu peso na África é incomparavelmente menor e, segundo, há a lógica suspeição de que se trata de uma retaliação ao início de um exame preliminar –primeiro passo para determinar se uma investigação completa é necessária– sobre alegações de assassinatos, prisões, torturas, estupros e outras formas de violência sexual cometidas no país desde o início de 2015.

    A ministra da Justiça, Aimée Laurentine Kanyana, prefere interpretar a retirada como um ato de soberania. Segundo Kanyana, a CPI é "um instrumento de pressão sobre os governos dos países pobres e um meio de desestabilizá-los".

    A queixa de Burundi, ecoada por outros países africanos, é a de que o tribunal internacional tem um viés contra a África, o que só parcialmente combina com os fatos.

    Escreve, para Newsweek, Conor Gaffey: "Todos os quatro suspeitos condenados por crimes contra a humanidade e/ou crimes de guerra pela CPI são africanos. O mais recente deles foi Ahmad al-Faqi al-Mahdi, do Mali, sentenciado a nove anos por destruir locais históricos de culto no norte de seu país em 2012".

    A queixa dos africanos esquece, no entanto, que a Corte condenou também europeus (sérvios e bósnios), o mais notório dos quais foi Radovan Karadzic, ex-líder bósnio, condenado, este anos, a 40 anos de prisão, depois de passar 10 anos escondido.

    Foi acusado de genocídio e crimes de guerra.

    Esquece ainda que outros países não africanos, entre eles a Colômbia, também têm investigações preliminares abertas.

    Mesmo um país rico como o Reino Unido não escapou do radar: a CPI abriu investigação preliminar para verificar se soldados britânicos cometeram crimes de guerra no Iraque.

    Essa investigação se entronca com a alegação que a África do Sul está usando para justificar sua saída da Corte: segundo documento interno obtido pela Al Jazeera, o governo acha que suas obrigações com a resolução pacífica de conflitos resultam às vezes incompatíveis com interpretações da CPI.

    Traduzindo: às vezes, soldados convocados para missões de paz se envolvem eles próprios em crimes contra a humanidade, pelo menos na visão da Corte.

    A queixa dos africanos sobre discriminação contra seus líderes pode até ter certo fundo de verdade, mas é mais lógico entender que é na África que existe o maior número de países em que abusos de autoridade são mais difíceis de investigar localmente –o que leva a CPI a ser chamada a intervir com mais frequência.

    Em geral, aliás, por solicitação dos próprios africanos.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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