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    Clóvis Rossi

    Síria das Américas, Venezuela tem crise não só política, mas humanitária

    27/10/2016 02h00

    A "Toma de Venezuela" é realmente uma impressionante manifestação, mas, até o momento em que escrevo, no fim da tarde, parece incapaz de mudar a avaliação do escritor venezuelano Ibsen Martínez para "El País", na qual cita frase de Ángel Alayón, editor do "site" Prodavinci, que por sua vez remete a Carlos Monsiváis, grande escritor mexicano morto em 2010: "Quando estava entendendo o que acontecia, já havia passado o que estava entendendo."

    Bingo. De fato, na segunda-feira (24), o mundo inteiro parecia haver entendido que, enfim, governo e oposição se encaminhavam para um indispensável diálogo, sob intermediação do Vaticano, aparentemente único ator capaz de organizar as coisas.

    No dia seguinte, no entanto, o diálogo, que nem começou, já estava morto. Primeiro porque líderes oposicionistas disseram só ter tido conhecimento pela televisão da proposta de diálogo anunciada pelo enviado do papa.

    Quem, então, participou da primeira mesa de conversas que, sempre segundo o pessoal do Vaticano, agendou o início efetivo do diálogo para domingo (30)?

    Não bastasse esse pequeno mistério, a Assembleia Nacional, controlada pela oposição e desconhecida pelo governo, deu o pontapé inicial para o que pretende ser um processo equivalente ao impeachment de Nicolás Maduro.

    A rua, nesta quarta, referendou simbolicamente a iniciativa. O presidente, por sua vez, acusa a oposição de tramar um "golpe parlamentar" e obtém apoio do chefe das Forças Armadas, general Padrino López.

    Não é preciso ser PhD em ciência política para saber que, assim, qualquer diálogo é impossível.

    Fica, portanto, inócuo o sensato apelo dos principais países das Américas, entre eles todos os do Mercosul, com a óbvia exceção da Venezuela, para que "todos os atores políticos" concretizem, "com brevidade e em um clima de paz, os esforços de diálogo nacional, de maneira direta ou com o apoio de facilitadores". O que fazer agora?

    Fica a terrível sensação de que a Venezuela é uma espécie de Síria das Américas: está metida em uma crise de dimensões apocalípticas sem que o mundo encontre um caminho para interferir de forma a evitar um desastre ainda mais profundo —se é que é possível descer ainda mais aos infernos.

    O dado mais recente do naufrágio venezuelano é o custo da Cesta Familiar Básica, que subiu 457,5% de setembro de 2015 a setembro passado. Só com 24 salários mínimos é possível comprá-la —o que evidencia a degradação impressionante das condições de vida no país.

    Tão degradadas estão que, para seguir na comparação com a Síria, a mortalidade infantil no primeiro ano de vida atingiu 18,6 por mil nascimentos. Na Síria em guerra, a taxa é inferior (15,4 por mil).

    Mais alguns dados sinistros: ao terminar o ano, a economia venezuelana terá conhecido novo declínio (de 8%), a inflação superará 700%, o deficit fiscal será de 17% do PIB e a dívida externa baterá em US$ 130 bilhões.

    Está na hora de a diplomacia brasileira se mover da cautela secular para um ativismo coordenado com os vizinhos. Não é uma questão político-ideológica, mas humanitária.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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