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    Clóvis Rossi

    Imigrante deixa inferno para trás, mas saga não termina ao chegar ao paraíso

    16/02/2017 02h00

    Emilio Morenatti/Associated Press
    Imigrantes africanos se enrolam em lençóis após serem resgatados de barcos no mar Mediterrâneo
    Imigrantes africanos se enrolam em lençóis após serem resgatados de barcos no mar Mediterrâneo

    Almoço na "Trattoria Canonica", a passos da espetacular Piazza San Marco, em Veneza. Os garçons são todos asiáticos. Muito provavelmente filipinos (afinal, trata-se da terceira maior comunidade de estrangeiros regulares na Itália, desconsiderados os provenientes da própria Europa).

    Pergunto ao gerente de onde são seus garçons. Ele responde que são todos legais. Como não foi o que perguntei, insisto: de onde vêm? "De lá", responde e foge para a cozinha.

    É um microrretrato do problema migratório que é assunto dominante hoje na Europa e, mais ainda, nos EUA. Primeiro, o fato de que os trabalhadores da "trattoria" só podem ser ilegais, para que o gerente fuja da pergunta. Mesmo assim, são também a face menos infeliz da imigração: têm um emprego, portanto, ganham um salário fixo, mesmo que seja inferior ao de um italiano na mesma profissão.

    Não sei se o gerente se enquadra na categoria dos que vociferam contra a imigração, mas se valem dela para gastar menos com a mão de obra. O fato é que há muitíssima gente que o faz —e, ainda por cima, vota em partidos xenófobos.

    Segundo, o drama de fugir de uma guerra ou de uma situação econômico-social insuportável e enfrentar a morte no percurso até a Itália (ou até os Estados Unidos ou qualquer outro país rico) é apenas a primeira etapa da saga.

    O medo continua presente mesmo depois de alcançado o destino. Dá uma imensa pena ver os olhos amedrontados dos ambulantes que vendem quinquilharias em qualquer praça ou ponto turístico italiano.

    Ficam com um olho no cliente potencial e outro no "rapa" que a qualquer momento pode chegar e confiscar os badulaques que vendem.

    Só não são invisíveis para os italianos porque a cor os delata. Há os negros, hoje minoritários, e há os cor de cobre, vindos ou das Filipinas ou do subcontinente indiano (Índia, Bangladesh, Sri Lanka e Paquistão), que figuram entre as 13 maiores comunidades de estrangeiros regulares, excluídos os da própria Europa.

    Não são muitos: no total, há 5.026 milhões de estrangeiros legais, ou 8,3% da população total da Itália. Mas qualquer cálculo sobre o número de irregulares é puro chute. Não se registram em lugar nenhum e, se até quem tem emprego fixo, como os garçons da "Canonica", teme ser delatado, imagine-se os ilegais.

    Ao medo, some-se a subsistência precária. O que pode ganhar alguém que oferece aos turistas farelo para atrair as pombas da Piazza San Marco em troca de uma esmola qualquer? Ainda assim, o "efeito chamado" é visível na praça: todos os que oferecem farelo (ou pau de selfie, outra praga) parecem ter saído da mesma tribo.

    O problema dessa massa —legal ou ilegal— não é só o de aceitá-la. Aceitá-la, aliás, é o mínimo que a civilização deveria fazer. São deserdados da fortuna, e seus países não lhe oferecem nem sequer a esperança. O problema, sem solução à vista nem mesmo remotamente, seria o mundo criar as condições para lhes devolver a esperança em sua própria terra. Seus olhos talvez perdessem o medo.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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