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    Clóvis Rossi

    Juro alto, falácia lucrativa

    19/02/2017 00h00

    André Lara Resende, um dos mais brilhantes cérebros do Brasil, fez bem em agitar o tema dos juros, mas faltou ir mais fundo no assunto.

    Por isso, desencavo elementos de uma coluna de maio de 2003, na qual resumia um alentado estudo publicado pelo Fundo Monetário Internacional em 1999, que desmontava a sabedoria convencional que diz que aumentar os juros derruba a inflação e vice-versa.

    Quem me chamou a atenção para o estudo foi o leitor e pesquisador Jacques Dezelin. Ele mergulhou em 1.323 casos de 119 países e verificou que, na maioria absoluta deles, a inflação caiu, qualquer que tivesse sido a ação do respectivo Banco Central, aumentando, diminuindo ou mantendo a taxa de juros.

    A maior porcentagem de êxito (ou seja, de casos em que a inflação caiu) se deu justamente quando o BC reduziu os juros. Nesse caso, a porcentagem de sucesso foi a 62,18% dos 476 casos examinados, contra 50,75% dos 398 casos em que a inflação caiu quando a taxa de juros aumentou.

    A segunda maior porcentagem de sucesso se deu quando não se mexeu nos juros (53,45%).

    Conclusão de Dezelin: "O que os dados estatísticos do FMI apontam é o caráter meramente aleatório da relação (ou melhor, a ausência de relação) entre a variação da taxa de juros do BC e a inflação".

    Teoria alucinada de um pesquisador aloprado? Não foi a impressão que teve, por exemplo, Antonio Delfim Netto, do alto de sua tripla experiência como ministro da Fazenda (durante a ditadura), como deputado federal (à época) e como professor de economia (sempre).

    Delfim me telefonou no dia em que saiu a coluna e perguntou se eu poderia lhe encaminhar o dossiê de Dezelin. Fiz mais: encaminhei a ele o próprio Dezelin. Depois, o pesquisador me contou que Delfim dissera, brincando ou não, que a única solução para o problema da dívida brasileira era queimar os papéis.

    Outro profissional que me telefonou em seguida foi o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Queria saber quem era Dezelin.

    Contei e perguntei: se eu lhe dissesse que se trata de um Nobel de Economia, você baixaria os juros (naquela altura estavam em obscenos 26,5%, em pleno governo de um PT que maldizia os juros e a dívida pública)?

    Importante ressaltar dois dados desse estudo: primeiro, não foi feito pelo PSOL ou algum partido radical, mas pelo bastião da ortodoxia, o FMI.

    Segundo, não foi analisado um caso isolado ou meia dúzia deles, mas 1.323 em 193 países (na verdade, menos, porque houve países estudados mais de uma vez).

    Lara Resende, portanto, tocou a tecla certa, mas falta acrescentar um elemento essencial nessa história: juros altos representam uma impressionante transferência de renda de toda a sociedade para uma parcela relativamente pequena, os portadores de títulos da dívida, os chamados rentistas.

    Basta dizer que, em apenas um ano, os rentistas (5 milhões de famílias?) recebem do governo, via juros, o que os beneficiários do Bolsa Família (14 milhões de famílias) levam 14 anos para ganhar.

    crossi@uol.com.br

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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