• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 07:38:58 -03
    Clóvis Rossi

    E as veias continuam abertas e sangrando

    31/05/2017 12h48

    É preciso repetir sempre que a obscena desigualdade que marca a América Latina (e o Brasil em particular) não é apenas uma questão ética, o que já seria importante. É também "um obstáculo para o desenvolvimento sustentável", como reafirma a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) em seu Panorama Social 2016, divulgado na terça-feira (30).

    Diz o relatório que, "entre 2008 e 2015​,​ a desigualdade na distribuição de renda das pessoas diminuiu na América Latina graças à prioridade que os países deram ao desenvolvimento social, porém seu ritmo de declínio se desacelera entre 2012 e 2015 e os níveis atuais seguem sendo muito altos para alcançar o desenvolvimento sustentável".

    Ricardo Hiar/Folhapress
    O catador de recicláveis Thiago Santos, 28, beneficiário do Bolsa Família, em São Paulo
    O catador de recicláveis Thiago Santos, 28, beneficiário do Bolsa Família, em São Paulo

    Aqui é preciso abrir um parêntesis para desmontar, mais uma vez, a lenda de que a desigualdade caiu no Brasil nos anos Lula. Caiu, talvez, a desigualdade entre salários, mas não a desigualdade verdadeiramente importante​,​ que é entre a renda do capital e a renda do trabalho.

    O relatório da Cepal deixa claro esse aspecto​, ​que já cansei de enfatizar em meia dúzia de textos ao longo dos anos.

    Diz: "Esta edição do Panorama Social também chama a atenção sobre a estrutura da propriedade (de ativos físicos e financeiros) como um fator fundamental para a reprodução da desigualdade na região. Por meio de um estudo de caso, constata-se​ que a distribuição da riqueza é ainda mais desigual que aquela medida somente pelas rendas correntes das pessoas".

    Traduzindo: a desigualdade não pode ser medida apenas pelas rendas resultantes de salários, aposentadorias e pensões. Para o retrato ser realista, é preciso pôr nele ganhos do capital, heranças, rendas resultantes de patrimônio, investimentos financeiros e atividades afins.

    A lenda da queda da desigualdade no Brasil foi alimentada pelo tal índice de Gini, em que zero representa ausência de desigualdade e 1 a desigualdade máxima. Acontece que o índice só mede salários, aposentadorias e pensões, não todos os ganhos relacionados à propriedade e ao investimento de capital.

    Mesmo com esse defeito congênito, o Gini de 17 países da América Latina que figuram no relatório da Cepal foi 0,469 em 2015, "um nível considerado alto". Logo, a desigualdade real entre rendimento do capital e do trabalho é necessariamente ainda mais alta.

    E, como se fosse pouco, a Cepal mostra que a melhora detectada entre 2008 e 2012 (1,2% anual em média) viu seu ritmo diminuir para a metade entre 2012 e 2015 (0,6% anual).

    No Brasil, um dos raros estudos em que se busc​aram​ dados que fossem além da valiosa mas insuficiente P​nad​ (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios) teve como coautor Pedro Ferreira de Souza, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

    Ele mergulhou em dados do ​Imposto de ​R​enda para "recuperar a história dessa desigualdade desde os anos 1920, quando éramos ainda um país rural, com população menor do que a do Estado de São Paulo hoje".

    Conclusão: "De lá para cá, muita coisa mudou no Brasil, mas não a desigualdade. A concentração de renda no 1% mais rico da população adulta manteve-se em patamar alto, sem nenhuma tendência clara de longo prazo".

    Ferreira de Souza calcula que o 1% mais rico e que fica com uma fatia do bolo desproporcional "corresponde a um universo em torno de 1,5 milhão de pessoas com renda bruta mensal a partir de algo em torno de R$ 20 mil".

    Faça-se, então, a comparação: o Bolsa Família, que beneficia 14 milhões de famílias ou cerca de 42 milhões de pessoas, precisa de 14 anos para dar-lhes os recursos que, em apenas um ano, vão para os portadores de títulos da dívida pública, via juros.

    Que sejam 10 vezes mais que o 1,5 milhão do top 1% –​ainda assim, é uma brutal diferença, que perpetua a desigualdade e destrói a propaganda de que ela diminuiu nos últimos anos.

    crossi@uol.com.br

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024