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    Clóvis Rossi

    O terror ainda me tornará paranoico

    05/06/2017 14h42

    Se eu fosse paranoico, acharia que o terrorismo está me perseguindo e só não me pegou ainda porque as informações que tem sobre meu paradeiro estão defasadas.

    É que todos os atentados em países europeus nos últimos muitos anos ocorreram em locais que me são caros ou que frequento regularmente.

    Dois exemplos apenas, entre tantos possíveis: em Nice, na França, hospedei-me, em 2011, com parte da família (mulher, filho, nora e neta) em hotel da Promenade des Anglais exatamente em frente ao ponto em que um caminhão iniciou a disparada para atropelar e matar 86 pessoas em julho de 2016.

    Há exatamente um ano, estava cruzando a ponte de Londres (com mulher e filha), essa mesma que outro veículo atacou no fim de semana.

    Como não sou (ainda) paranoico, acabo entendendo que é mera coincidência. Essas duas localidades, assim como outros pontos atacados na França, no Reino Unido, na Bélgica e por aí vai, são inevitavelmente procurados por muita gente, turistas inclusive, o que dá maior repercussão a cada atentado.

    O objetivo dos terroristas não é ganhar a guerra que declararam contra os que chamam de "infiéis", mas o de fazer propaganda de seu combate. Funciona, como se vê: usar veículos para atropelar pessoas passou a ser uma arma copiada de atentado para atentado (começou, é bom lembrar, em Israel).

    Esfaquear indiscriminadamente também virou instrumento de uso constante (em Israel, de novo, também).

    Ou, posto de outra forma: é menos importante, para o terrorista, assustar a população local do que enviar uma mensagem aos companheiros cuja tendência para o terrorismo está adormecida.

    O terrorista sabe que sua ação não vai alterar o modo de vida da cidade/país atacado. O Reino Unido dá um exemplo definitivo: depois de três ataques seguidos e de grande repercussão em apenas três meses, mesmo assim vai se realizar a eleição marcada para esta quinta-feira (8), como acontece regularmente há sei lá quantos séculos.

    Por isso, faz sentido a primeira-ministra Theresa May dizer que o que se deve combater "é a ideologia demoníaca do extremismo islâmico", que ela, prudentemente, separa do islã, ao dizer que se trata de "uma perversão do islã e da verdade".

    Mas, embora a ideia-mãe pareça correta, um dos desdobramentos dela é perigoso: aquele que põe em causa o multiculturalismo que é uma das riquezas do Reino Unido.

    May vê riscos à democracia britânica pela existência de comunidades separadas e segregadas. Nelas, em tese, ficam incubadas tendências extremistas que, ao menor gatilho, podem se tornar violentas.

    Para "The Guardian" (firme opositor a May, é bom que se diga), trata-se de "policiar pensamentos em vez de atos".

    O jornal entende que a ideia de policiar essas comunidades "excluiria a cooperação exatamente com as pessoas mais bem colocadas para desencorajar o terrorismo: aquelas que mantêm crenças 'extremistas' similares mas que não são violentas e se opõem aos métodos violentos".

    Seria, diz ainda o jornal, "criminalizar os olhos e os ouvidos que se necessitam para detectar o terror".

    A tese do "Guardian", traduzida livremente, significaria combater uma ideologia, por demoníaca que seja, com outra, benigna. É uma teoria bonita, lírica até, mas temo que, à esta altura, esteja comprometida pelo fanatismo que marca o terrorismo.

    Fanáticos não se sensibilizam com pregações que não sejam as de seus próprios demônios internos. Nem tampouco, aliás, com mais policiais nas ruas —o que me faz temer que acabarei de fato paranoico.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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